Anora (2024) | Crítica

Após retratar uma América periférica, por meio da rotina de Moonee, Halley e Bobby (interpretados por Brooklynn Prince, Bria Vinaite, e pelo querido Willem Dafoe) em Projeto Flórida – e da busca por sobrevivência de Mikey Davies, em Red Rocket -, Sean Baker optou fazer o mesmo em Anora, ao inverter o enfoque em mais de um sentido.

O novo filme de Baker se debruça sobre a realidade abastada oposta, sob um dos recortes de uma família oligarca russa, para trabalhar o contraste com a realidade da protagonista homônima, Ani (Mikey Madison). Essa temática, no entanto, não encontra-se sozinha na obra, que visa subverter as convenções dos contos de fadas aos quais estamos tão acostumados – e dos quais somos tão dependentes, consciente ou inconscientemente. Anora, portanto, explora temas como a busca por identidade, as disparidades de classe, a ilusão do sonho americano e as complexidades das relações humanas, onde a promessa de uma vida melhor se revela uma armadilha de expectativas não correspondidas.

O longa é um conto de Cinderela moderno, e segue Ani, uma stripper de 23 anos do Brooklyn, que se relaciona com um herdeiro russo que atendeu no clube, Ivan, conhecido como Vanya (Mark Eydelshteyn). Após contratá-la para ser a sua “namorada” por uma semana, em sua estadia nos EUA, o garoto a pede em casamento impulsivamente, em Las Vegas. Após a oficialização do matrimônio, porém, o conto de fadas rapidamente se transforma em pesadelo, quando a família do jovem tenta anular o casamento.

Baker consegue transcender a narrativa de transformação social, ao entrelaçar uma realidade marcada por desejos frustrados e esperanças desvanecidas; ao mesmo tempo em que traça o perfil de uma geração, sobretudo na figura de Vanya. O jovem de 21 anos é resumido em uma linha de diálogo, quando Anora devolve a pergunta que recebeu, ao que o rapaz replica, com uma sinceridade inocente: “estou sempre feliz”.

As gerações líquidas e a busca por efemeridade 

Apesar de não ser possível separar completamente a realidade socioeconômica da personalidade do jovem, pode-se fazer o exercício de abstrair dele características inerentes a toda uma geração, ao mesmo tempo vítima e responsável pelas – já clichês – relações líquidas cunhadas por Bauman. Ao passo que a relação se “desenvolve”, chega até a ser difícil para o espectador a impotência de enxergar nitidamente a enrascada na qual Ani está entrando, sem poder avisá-la sobre.

As gerações líquidas e a busca por efemeridade 
Fonte/Reprodução: Red Gaskell/IndieWire

Em sua primeira visita à mansão de Vanya, Anora comenta que o rapaz é engraçado. Isso porque, apesar de ter uma vivência maior do que a da maioria das garotas no início de seus 20 anos, ainda permanece uma boa dose de imaturidade inerente à sua idade. O “engraçado” é, na verdade, a quase paradoxal existência de uma criança no corpo de um jovem adulto, que vive uma rotina marcada por uma teia de contradições entre a inocência e a esbórnia, incapaz de lidar com os seus próprios problemas e assumir o que faz.

Tanto nesse contexto da glamourosa inocência, quanto da quebra da ilusão, Mikey Madison entrega uma performance notável como Ani, transmitindo vulnerabilidade e força em igual medida. A sua química com Mark Eydelshteyn é palpável, e destaca a impulsividade de seu relacionamento.

Quando a trama é subvertida, Baker inicia um processo de divisão de foco, quando Vanya cede lugar ao capanga Igor, desenvolvido com impecável sutileza, por meio das microexpressões do talentoso Yura Borisov. Nessa transição o cineasta também traz uma sequência inteiramente cômica, quase como uma sitcom, e que flerta com o absurdo da situação, e da própria e impune violência. 

Na verdade, Anora passeia por diferentes tons, em seus quase 140 minutos – todos executados com maestria. As cenas ou momentos cômicos funcionam perfeitamente, ao passo que os contextos dramáticos carregam um peso que nos faz ficar com o coração na mão. Igor está representando o espectador, em sua crescente empatia pela protagonista. Mas não só a sua relação com os dois é bem desenvolvida: Baker não deixa nenhuma interação mal resolvida, de forma que nada no longa é leviano. As proporções são respeitadas, e o diretor sabe o que desenvolver objetivamente e o que trabalhar de forma não dita. Dada a convergência dessas idiossincrasias, o longa adquire alma.

A cidade como reflexo das contradições

Baker segue a sua linha de direção com uma atenção incomum aos detalhes da vida cotidiana. Aqui, a câmera se move com agilidade pelas ruas de Nova Iorque, especialmente as áreas de Brighton Beach, Brooklyn. A fotografia, ao mesmo tempo crua e belamente imersiva, captura a “fragilidade” do lugar, onde as ilusões são facilmente quebradas. Essa escolha é fundamental, pois a cidade se torna mais do que um mero pano de fundo; é um reflexo das contradições de Ani, que vive entre dois mundos: o real e o ilusório, o sujo e o luxuoso.

Corações partidos deixam a alma mais bonita
Fonte/Reprodução: Neon

A direção de arte e a fotografia de Drew Daniels não são apenas esteticamente impactantes – nota-se a herança, por parte de Daniels, de Euphoria -, mas funcional, refletindo as transformações internas e externas da protagonista. A transição de Ani de uma vida de dificuldades para uma existência superficialmente luxuosa é acompanhada por uma mudança no design de produção, com o brilho da riqueza sobrepondo-se à dura realidade de sua vida pretérita. Contudo, não há glamour no olhar da câmera; tudo é filtrado pela vulnerabilidade e pela tensão da personagem.

Corações partidos deixam a alma mais bonita

Toda essa atenção técnica – uma vez que o diretor planejou cada detalhe, do roteiro à produção – não se configura, porém, como exercício vazio de forma. Pelo contrário: todo esse esmero foi executado com autenticidade e, acima de tudo, sensibilidade, característica-chave do cinema de Sean Baker. 

E daí nascem a fluidez e a alma do longa, como um pincel sobre uma tela em branco, que vai adquirindo a cor da primavera, enquanto o tempo parece não mais existir, irrelevante. A pintura começou com cores mais sóbrias, adquiriu tons vivos; mas foi finalizada com cores sombrias, após algumas pinceladas caóticas. Mas está tudo bem, Ani. A vida é justa; o seu timing que não é dos melhores.

Nota: 5/5

Anora
Anora

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