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Nosferatu (2024) | Crítica

Sumário

Quando Robert Eggers anunciou, algum tempo após o lançamento e recepção de The Northman (2022), que o seu longa-metragem seguinte seria um remake de Nosferatu, ganhou a atenção de muitos; em especial de quem estava sentindo falta de O Farol (2019) e A Bruxa (2015). Isso porque em The Northman, Eggers, apesar de seguir com o seu interesse por mundos antigos e brutalidade histórica visceral, usufruiu de um orçamento muito maior e uma escala mais grandiosa, em concomitância com uma narrativa mais convencional.

É claro que, embora mais “mainstream” em termos de temática – afinal, trata-se, grosso modo, da junção dos vikings, mais populares do que nunca, com uma abordagem shakespeariana – o filme ainda preserva uma sensação de desconforto psicológico, com a violência de época representada de forma crua e direta.

Em seu primeiro longa, Eggers utiliza um estilo de direção muito mais contido e atemporal, evitando quaisquer hipérboles, ao dar vida a um mundo de superstição e desespero com um ritmo lento e perturbador. A tensão em A Bruxa é pautada pela observação das interações e repetições entre os personagens e os espaços em que habitam, com longos momentos de silêncio que criam uma sensação de desconforto crescente.

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Fonte/Reprodução: Focus Features

O Farol é o filme mais estilisticamente ousado de Eggers, com o seu formato 1:1 (quadrado). A obra é uma mistura de horror psicológico, surrealismo e tragédia, filmada em preto e branco e com uma abordagem visual que remete ao cinema clássico, especialmente aos filmes dos anos 1920 e 1930 – tal qual o Nosferatu de F.W. Murnau, de 1922. Aqui, Eggers apoia-se em peso e imersivamente na performance de Willem Dafoe e Robert Pattinson (cuja performance provavelmente foi a maior responsável por adquirir o papel de Homem-Morcego), em sincronia com um sentido quase táctil de desconforto através do estilo visual e sonoro. A direção é ainda mais minimalista do que em A Bruxa.

Eggers é conhecido por sua abordagem minimalista e pelo seu zelo pela acuracidade histórica, que perpassa a sua quadrilogia fílmica. O seu foco em criar ambientes imersivos e buscar sempre o desconforto, o distanciamento e o confronto com o absurdo da existência humana é costumeiramente relacionado ao gênero do terror, mas esse nunca foi o verdadeiro caso. Apesar de os seus dois primeiros longas serem mais facilmente identificáveis como terror, não se pode dizer que The Northman necessariamente quebrou algo que não existia. Separar a sua estética do desconforto do terror é oportuno para analisar a sua filmografia; e Nosferatu veio, ironicamente, para reforçar isso.

A poética do desespero

Talvez por compreender que o gênero vampírico deixou, há muito, de gerar medo ou qualquer sentimento relacionado, Eggers parece – e isso se reflete na performance de seu elenco – tratar o horror gótico, aqui, com contornos perceptíveis de ironia e jocosidade, no melhor sentido dos termos. É claro que toda a mise-en-scène permanece nos mesmos moldes, sem nada fora do lugar. São as nuances que entregam as intenções de um Eggers que está se levando menos a sério, quase como uma aura. Isso se mostra em situações cuja linguagem não foge em nada da atmosfera do terror psicológico, mas em que o efeito causado é cômico, em graus variados.

Sobre a atmosfera, pode-se afirmar com precisão que o diretor optou por seguir mais a abordagem do Nosferatu (1922) de F.W. Murnau, um dos maiores expoentes do expressionismo alemão, com um estilo visual que legou toda uma linguagem ao cineasta, fortemente marcada pelas sombras, formas distorcidas e cenários que evocam uma sensação de alienação e desconforto. 

A poética do desespero
Fonte/Reprodução: Focus Features

A representação original do vampiro de 1922, na figura de Max Schreck, é imortalizada pela sua aparência grotesca e sobrenatural. Ele é um predador que assola o mundo dos vivos com o seu toque de morte, encarnando a transgressão do natural e o medo de forças além do controle humano. Já o primeiro remake de Nosferatu (1979), de Werner Herzog, reinterpreta de forma mais existencial o clássico, ao humanizar a figura do vampiro. O personagem de Nosferatu de Klaus Kinski é mais trágico e vulnerável do que monstruoso, refletindo uma solidão imensa e uma imortalidade angustiante, em busca por conexão.

Eggers claramente opta, no segundo remake, por seguir mais o legado do original. O horror gótico neste Nosferatu segue uma ênfase no isolamento e no medo do desconhecido. O ambiente gótico está presente tanto na arquitetura das casas quanto no clima sombrio e opressor, mais atmosférico do que baseado em sustos. A estética e a ambientação, ainda mais do que nos longas anteriores do diretor, permitem-se criar uma sensação de distorção e alienação. A paisagem, marcada por elementos sobrenaturais, é enaltecida pelo trabalho sempre impecável de fotografia de Jarin Blaschke, como na viagem de Thomas até o castelo de Orlok. Tudo sob a atmosfera proporcionada pela trilha de Robin Carolan, que reproduz o nível de excelência ouvido em The Northman.

Quanto ao elenco, todos desempenham um trabalho sólido, cada um com a função que lhe cabe. Nicholas Hoult (Thomas) é incumbido de encarnar o medo em suas feições ao longo de todo o filme, ao passo que Lily-Rose Depp (Ellen) encarna o desejo e a cólera – por vezes separados, por vezes de forma síncrona. Emma Corrin (Anna) e Aaron Taylor-Johnson (Friedrich) têm um papel mais passivo a desempenhar em termos de performance, funcionando mais como suporte aos dois primeiros. 

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Fonte/Reprodução: Focus Features

No caso de Taylor-Johnson, o suporte maior é prestado aos personagens e atuações dos dois maiores parceiros de elenco de Eggers, Ralph Ineson (Dr. Wilhelm) e Willem Dafoe (Eberhart Von Franz). Ambos, sobretudo este, realmente conduzem a trama quando Orlok traz a praga para a urbe. Bill Skarsgård, por fim, pelo próprio tom misterioso de seu personagem, que pouco aparece em primeiro plano; apresenta uma atuação física mais sutil, mas uma atuação verbal muito impactante – assim como o seu volumoso bigode.

O resultado de todos esses trabalhos é um longa impecável em toda a sua forma, cujo único defeito é a inerência de ser não um, não dois, nem mesmo três remakes. Afinal, Nosferatu é uma adaptação não oficial de Drácula, e traz consigo toda uma carga intrínseca ao personagem original. Este longa, portanto, carrega o grau de familiaridade de todos os seus antecessores, sobretudo os dois Nosferatu e o Drácula de Bram Stoker. Disso resulta a ausência de qualquer espécie de entusiasmo sobre conhecer algo novo. A sensação de assistir ao longa se assemelha mais a rever um filme muito querido, mas sem a possibilidade de se recriar a sensação de epifania da primeira vez.

O resultado é inexorável

Talvez a mensagem que mais possa apresentar uma nova perspectiva – também presente no original, mas reforçada de uma maneira mais autêntica e que dialoga melhor com os nossos tempos – é a decadência moral e a desesperança, com um vampiro que reflete a corrupção carnal e os desejos mais sombrios da humanidade. Apesar de Orlok representar o desconhecido e a transgressão das leis naturais, a construção do personagem do vampiro é profundamente ligada a questões de poder, desejo e corrupção. Destes, o desejo sexual acaba se mostrando o derradeiro.

Aqui, o desejo sexual se entrelaça profundamente com a sina de Orlok, uma metáfora para o próprio conceito de desejo irrefreável, mas também destrutivo: a encarnação do desejo incontrolável. Este Nosferatu é dominado por uma necessidade constante e insaciável. O seu desejo não é apenas físico, mas algo que transcende a carne e se torna uma obsessão. Muito mais do que pelo sangue, ele é alguém consumido por uma urgência visceral de dominar, de possuir. Mas, ao mesmo tempo, esse desejo é fatal e repulsivo, tanto para ele quanto para Ellen. 

O resultado é inexorável
Fonte/Reprodução: Focus Features

O vampiro, portanto, representa o desejo sexual e ao mesmo tempo se torna o próprio mecanismo de sua maldição. Esse ciclo vicioso não pode ser quebrado. A sua atração não é amorosa, mas uma necessidade animalesca que reflete o vazio existencial e a perda de controle sobre si mesmo. Por fim, esse desejo que se torna uma obsessão, desfigura e consome fecha-se em si mesmo. O resultado é inexorável.

O que se pode concluir de Nosferatu (2024) é o seu nível de excelência máximo em todos os seus elementos e execuções, pois funciona perfeitamente como uma apreciação da estética do horror gótico – e do cinema – em sua forma mais bela. Não seria justo subtrair disso qualquer mérito em função de um fator inerente à sua narrativa já consolidada. 

Apesar de não haver superado O Farol como o melhor longa da carreira do cineasta, este é uma ode máxima à beleza surrealista e desoladora dos contrastes profundos entre luz e sombra característicos da fotografia de Blaschke, ao belíssimo zelo pela recriação e acuracidade histórica da filmografia de Eggers, e à essência do expressionismo alemão inerente ao próprio Nosferatu.

Nota: 5/5

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