Há de se dizer que F1, o novo longa de Brad Pitt, é uma obra antiquada. Mas, antes, voltemos alguns passos e nos direcionamos à História enquanto ciência. A historiografia passou por uma transformação significativa ao longo do século XX, com a emergência de abordagens que priorizam a história das pessoas comuns em detrimento dos “grandes homens” e dos eventos extraordinários.
Esse movimento na historiografia é conhecido como “História Social” ou “História Vista de Baixo”, e consolidou-se no século XX como uma ruptura com a historiografia tradicional, centrada nos “grandes homens” e em eventos extraordinários. Inspirado por correntes como o marxismo e a Escola dos Annales, ele deslocou o foco para as estruturas sociais, econômicas e culturais, colocando as massas e o cotidiano no centro da análise histórica.
A Escola dos Annales, com pensadores como Marc Bloch e Fernand Braudel, destacou a importância das estruturas sociais e econômicas, ampliando a compreensão dos processos históricos. Autores como E. P. Thompson, com sua análise da formação da classe trabalhadora, e Howard Zinn, com sua história crítica dos Estados Unidos, deram protagonismo a vozes até então silenciadas. Essa abordagem enriqueceu a historiografia, permitindo uma visão mais inclusiva e diversa da trajetória humana.
Pilares Fundamentais do Imaginário Coletivo
Porém, a despeito do avanço das narrativas que privilegiam as histórias do povo, o ser humano ainda encontra profunda conexão com as histórias dos grandes heróis. Essas figuras, reais ou mitológicas, transcendem os seus contextos e funcionam como símbolos universais de coragem, sacrifício e transformação. Elas sustentam pilares fundamentais do imaginário coletivo, oferecendo modelos de aspiração e espelhos para as nossas ambições e desafios individuais.

Mesmo em tempos de narrativas mais democratizadas, que dão voz às massas e destacam a força coletiva, os heróis permanecem como catalisadores de inspiração. São as jornadas que nos ajudam a lidar com questões existenciais, a sonhar além de nossas limitações e a imaginar futuros possíveis. Essas histórias oferecem unidade em meio à pluralidade, conectando gerações por meio de valores e lições compartilhados.
A coexistência entre a figura do herói e as vozes do coletivo é essencial. Enquanto os heróis nos impulsionam a superar o comum, as narrativas democratizadas nos lembram que os grandes feitos raramente são individuais. O equilíbrio entre essas duas abordagens é o que enriquece o imaginário humano, mantendo a inspiração e a inclusão como forças complementares na construção de histórias que ressoam em todos nós.
Hollywoods Pretéritas
Retornando à sétima arte, o sucesso estrondoso de Top Gun: Maverick em 2022 oferece um ponto de reflexão interessante sobre o papel do protagonismo na era contemporânea de Hollywood. O filme aposta tudo não apenas no protagonismo de Maverick, mas na figura de Tom Cruise enquanto astro, cuja presença magnetiza a narrativa. Em um momento em que os blockbusters se sustentam em universos expansivos e personagens mais amplos do que os seus intérpretes, como os longas da Marvel ou de franquias como Star Wars; Maverick resgata uma tradição da velha Hollywood: o poder do astro como centro gravitacional de uma história.
Na era dourada do cinema, nomes como Humphrey Bogart, Marilyn Monroe e Cary Grant carregavam filmes inteiros, transcendendo os seus papéis e personificando um tipo de carisma que preenchia as telas. Esses astros eram verdadeiros ícones culturais, cuja presença marcante se tornava sinônimo da experiência cinematográfica. Na era do cinema mudo, figuras como Charlie Chaplin e Greta Garbo já exibiam essa força singular, enquanto, posteriormente, durante os anos 1950 e 1960, estrelas como Elizabeth Taylor e James Dean consolidaram esse protagonismo individual que fascinava o público.

Nos anos 80 e 90, Hollywood viu o auge do astro como símbolo absoluto do cinema de entretenimento. Figuras como Johnny Depp, Tom Cruise, Bruce Willis, Harrison Ford, Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone tornaram-se sinônimos de blockbuster, atraindo multidões não só pelo roteiro ou efeitos, mas pela força pessoal e carisma que carregavam. Esse período reforçou a ideia do ator como motor principal do sucesso de um filme, muitas vezes construindo franquias em torno da sua imagem.
Esse modelo foi gradualmente substituído por narrativas de franquias, ressignificado na década passada, quando a estrela passa a ser o universo compartilhado e os protagonistas enquanto símbolos (quase sempre em conjunto), e não o ator. Essa mudança, embora bem-sucedida comercialmente, deixou uma lacuna: o fascínio quase mítico pelo indivíduo que inspira e encanta não apenas pelo que faz, mas por quem é.
Os Últimos dos Moicanos
Cruise e Pitt, surgidos nesse auge das duas últimas décadas do século passado e início deste, talvez representem, hoje, os últimos grandes astros que ainda carregam o modelo clássico de protagonismo individual. Não são apenas atores, mas símbolos culturais, cujas presenças tornaram-se sinônimos de filmes que se sustentam, em grande medida, pelo carisma, personalidade e energia única que cada um carrega.
Em uma indústria cada vez mais dominada por franquias e múltiplos protagonistas, Cruise e Pitt lutam para manter vivo esse protagonismo centrado no astro — um formato que muitos consideram ultrapassado, mas que continua a ter uma força insubstituível.
Enquanto os blockbusters contemporâneos tendem a diluir a figura do herói em narrativas coletivas, esses atores resistem à tendência, mostrando que o fascínio pelo indivíduo que encarna não só o papel, mas também um ideal, ainda é poderoso e necessário. Eles carregam sobre os ombros o peso de um legado que exige mais do que a atuação. Exige presença, dedicação e uma conexão com o público; ao lembrar que por trás das grandes histórias ainda há espaço para heróis singulares que inspiram e emocionam.

Essa reivindicação é mais do que uma simples questão de estilo ou nostalgia. É uma forma de diversificar as narrativas contemporâneas. O protagonismo dos astros cria uma conexão mais direta e visceral com o público; evocando histórias que, mesmo centradas em indivíduos, refletem desejos e aspirações coletivas.
Em tempos de universos compartilhados, é revigorante lembrar que, às vezes, uma única presença pode carregar o peso de um blockbuster e nos lembrar do poder transformador de uma história centrada em alguém que ousa ser grande, mesmo diante da pequenez do ser humano diante do universo.
Essa discussão é imprescindível para que se entenda o lugar absoluto de F1 no cenário contemporâneo. Assim como Top Gun: Maverick resgatou o protagonismo do astro, este longa, também dirigido por Joseph Kosinski, busca seguir essa mesma linha, ao valorizar a presença marcante do ator como centro da narrativa. O longa aposta na força de Brad Pitt enquanto um dos últimos grandes astros de Hollywood, e na pele de um protagonista carismático para conduzir a história, reafirmando o poder do ícone como símbolo de inspiração e conexão emocional.
Elenco e Lendas do Esporte
Estrelado por Pitt como o protagonista Sonny Hayes, F1 conta com um elenco vasto. Damson Idris interpreta Joshua “Noah” Pearce, um jovem piloto promissor que vive a delicada relação entre protagonismo e antagonismo com Hayes. Kerry Condon assume o papel de Kate McKenna, diretora técnica da equipe APXGP, enquanto Tobias Menzies dá vida a Peter Banning, um influente membro da diretoria da equipe. Kim Bodnia interpreta Kaspar Molinski, chefe de equipe. Por fim, Javier Bardem ganha papel de destaque como Ruben Cervantes, um ex-companheiro de corrida de Hayes e atual dono da equipe.

Além do elenco principal, o filme traz participações especiais de todos os pilotos das dez equipes de Fórmula 1 da temporada de 2023, incluindo nomes como Max Verstappen, Lewis Hamilton, Charles Leclerc, Carlos Sainz Jr. e Fernando Alonso. Figuras icônicas do mundo da Fórmula 1, como Guenther Steiner e o tricampeão das 24 Horas de Le Mans, Benoît Tréluyer, também aparecem interpretando a si mesmos, adicionando autenticidade ao universo do filme. Ao longo do filme, lendas da Fórmula 1, como Ayrton Senna, Michael Schumacher e Alain Prost são mencionadas, uma forma de honrar o seu legado. Senna, em especial, recebe um foco maior, sendo citado (merecidamente) ao menos três vezes.
Realismo, Ritmo e a Essência da Adrenalina
F1 impressiona pelas sequências de corrida, que combinam autenticidade e sofisticação técnica. As cenas foram filmadas durante eventos reais da Fórmula 1, incluindo etapas icônicas como Silverstone, Monza e Abu Dhabi. As gravações ocorreram em janelas de 8 a 15 minutos entre treinos e classificações, exigindo precisão extrema e adaptabilidade. Além disso, as 24 Horas de Daytona foram incorporadas à narrativa, expandindo o escopo das corridas representadas.
Lewis Hamilton, consultor técnico do filme, garantiu que os movimentos, trocas de marcha e outros detalhes fossem representados com precisão. Essa abordagem assegurou um nível de realismo raramente visto em filmes do gênero.
Pitt e Idris passaram por um treinamento rigoroso, incluindo o uso de simuladores e direção em alta velocidade. Embora o CGI tenha sido utilizado para complementar colisões e condições climáticas, cerca de 80% das cenas de corrida foram capturadas de forma prática. Sequências como a de um pit stop filmado em tempo real com mecânicos reais reforçam o compromisso com a autenticidade.

Esse equilíbrio entre efeitos visuais e filmagens práticas proporciona uma sensação de imersão única, transportando o espectador diretamente para o coração das corridas. O resultado é uma experiência visual e emocionalmente envolvente, que estabelece um novo padrão para o cinema de automobilismo.
Apesar de as corridas estarem entre os grandes destaques do filme, é a trilha sonora que fornece todo um tom e sustenta a sensação de adrenalina. Nessa relação simbiótica, portanto, um dos grandes destaques de F1 é a trilha. Hans Zimmer possui experiência pretérita em longas de corrida, pois foi o responsável pela composição de Rush, de 2013. Além disso, esta é a segunda colaboração de Hans Zimmer com Joseph Kosinski, após o supracitado Top Gun: Maverick, quando colaborou com Steve Mazzaro, que também retorna aqui.
Zimmer cria uma atmosfera sonora que evoca o barulho dos motores: cordas eletrificadas, sintetizadores ruidosos e elementos que remetem a rádios de box e o som dos cockpit. Tudo isso comunica tensão e velocidade.
O score de Zimmer se funde com o projeto F1 The Album, lançado pela Atlantic Records em conjunto com o filme (27 de junho, um dia depois do lançamento no Brasil). Inclui faixas da vedete Don Toliver com Doja Cat, Rosé, Ed Sheeran, Tiësto, Chris Stapleton, entre outros; com samples diretos do tema principal composto por Zimmer A intenção é capturar o ritmo pulsante da Fórmula 1, reforçando o clima de aceleração e drama que o filme pretende transmitir.
Traumas, Relações e a Busca por Redenção
Já o coração humano de F1 reside em seu protagonista e nos membros mais próximos da equipe. Antigo prodígio da Fórmula 1 na década de 1990, a sua carreira foi interrompida por um acidente. Três décadas depois, Hayes vive fora dos holofotes, com um passado marcado por culpa, Transtorno de Estresse Pós-Traumático e a necessidade urgente de redenção para si mesmo. Recrutado pelo amigo e dono da equipe APXGP, Ruben Cervantes, Sonny retorna às pistas como piloto e mentor de Joshua Pearce, o jovem talento da equipe.

O que realmente se destaca é a habilidade de Pitt em explorar os contrastes de Sonny: a bravura do piloto que desafia os limites e a melancolia de um homem que precisa provar algo a si mesmo. A sua interação com Damson Idris revela uma dinâmica mentor-aluno que é ao mesmo tempo paternal e competitiva; e explora não apenas a habilidade de Hayes, mas também a sua luta interna para superar os próprios traumas.
No entanto, Sonny não é apenas um guia. Ele personifica um tipo de herói clássico — desconfiado da tecnologia, à moda antiga, e impulsionado por instinto e paixão — que contrasta fortemente com os pilotos high-tech da contemporaneidade. É nesse êxtase visual dos carros e das pistas que Pitt mostra a sua gravitas madura, conferindo autenticidade à figura do veterano tentando provar o seu valor uma última vez.
Enquanto o longa oferece sequências potentes de ação, é a interioridade de Sonny — as suas feridas não curadas, memórias de humilhação e a esperança de redenção emocional — que sustenta o arco dramático. É um personagem que, mesmo em meio ao espetáculo da velocidade, permanece profundamente humano, vulnerável e convicto de que é possível renascer das cinzas do passado.

Para os personagens e a sua teia de relações, Kosinski segue a cartilha do seu trabalho anterior e de outros longas — em especial, os de luta. A relação entre Sonny Hayes e Kate McKenna, por exemplo, espelha a dinâmica entre Maverick e Penny Benjamin (Jennifer Connelly) no Top Gun de Kosinski. Ambos os longas exploram parcerias que transcendem o profissional; e baseadas no respeito mútuo, na história compartilhada e na força das duas partes em enfrentar os desafios à sua frente.
Kate, assim como Penny, é uma figura forte e independente, que equilibra a dureza necessária ao seu trabalho com uma humanidade que complementa o espírito indomável de Sonny. Ela é um suporte para Sonny e uma líder, essencial para o sucesso da equipe e para a construção da confiança que Hayes precisa para retornar às pistas. Assim como Penny em Top Gun, Kate traz uma visão mais madura e pragmática da vida, contrastando com o impulso competitivo e, por vezes, imprudente de Sonny.
De forma similar se dá o espelhamento da conturbada relação entre o jovem Joshua Pearce e Sonny em relação a Maverick e Rooster (Miles Teller). Mas o espelhamento, uma fórmula clássica do cinema, pode ser visto em inúmeras outras obras: desde a relação entre Tom Kazanski e Maverick, no longa de 1986; até a construção da amizade de Apollo Creed (Carl Weathers) com Rocky Balboa.

Porém, ao contrário de muitas dessas obras, a progressão da relação entre eles é mais cadenciada (e muito bem executada), desenhada a pinceladas sutis, mas firmes e constantes. A própria contenda entre os dois é mais elevada, o que torna a cadência necessária.
A Reafirmação do Veterano
Ao final de F1, o roteiro brinca com o conceito de expectativas subvertidas, ao reverter a própria subversão. Em narrativas envolvendo protagonistas mais velhos, especialmente em sequências tardias, é comum que a trama culmine em uma passada de bastão simbólica, como visto com Rocky Balboa em Creed (2015). Essas histórias geralmente posicionam o mais velho como o vencedor moral, enquanto o jovem talento conquista a vitória oficial, marcando uma transição de gerações.
Em F1, o terreno é cuidadosamente preparado para que o espectador antecipe esse desfecho. A construção dramática sugere que Joshua vencerá a corrida final, enquanto Sonny possivelmente cruzará a linha de chegada em segundo lugar. Esse resultado, previsto como uma vitória poética para ambas as partes, entregaria o arco clássico de um protagonista que aceita o seu lugar no passado enquanto celebra o futuro.
No entanto, o filme desafia essa convenção, ao permitir que Hayes vença a corrida. Em vez de abdicar do protagonismo, Sonny reafirma o seu lugar no presente, demonstrando que a experiência e a resiliência ainda têm valor em um cenário dominado por jovens promessas. Essa escolha não diminui a jornada de Pearce, mas a reforça. Afinal, o piloto tem toda uma carreira pela frente.

Esse desfecho não é apenas surpreendente, mas tematicamente rico. Ele questiona a ideia de que o papel do veterano é, inevitavelmente, abrir mão do seu lugar. Em vez disso, F1 celebra a possibilidade de coexistência entre gerações, mostrando que o velho e o novo podem compartilhar a glória. Essa conclusão reforça o protagonismo de Brad Pitt e resgata uma dinâmica raramente explorada em histórias de mentores e pupilos, adicionando uma camada de complexidade ao filme.
A vitória de Sonny não às custas de Pearce, mas trabalhando juntos, não poderia ser uma metáfora mais condizente com o presente cenário hollywoodiano. Há espaço para todos, lado a lado; mas que vença aquele que for capaz de conseguir.
Um Cinema Antigo para Novos Tempos
E assim, F1 é uma obra contemporânea em toda a sua parte técnica, mas que abraça o antiquado — que é muito bem-vindo em um cinema que ainda parece em busca do seu novo lugar. A hegemonia dos longas de super-herois está em constante xeque e o fenômeno Barbenheimer foi único, sem similares desde então. Franquias como Star Wars e Indiana Jones parecem estar progressivamente perdendo espaço — ainda que a primeira tenha se encontrado no formato dos streamings.

Obras como esta abraçam o tradicional com consciência de que o estão fazendo, em um belo anacronismo. Não parece haver nada acidental ou fora do lugar nisso. É o cinema do protagonista (o protagonista ator, mais do que o personagem — o contrário do que será Superman em algumas semanas) em sua essência, com um ponto a provar.
O longa, portanto, é um antiquado necessário, para provar que novas formas de contar histórias são bem-vindas, desde que haja espaço para o old way. Ao fim, só os números poderão responder. De qualquer forma, a roupagem antiquada deixada de lado, sobram as impressionantes sequências de corrida, uma trilha sonora, edição e mixagem de som fantásticas (o que o torna um filme realmente valioso para ser experienciado em IMAX); e o sentimento de torcida, inevitável em obras com temática esportiva.
Por mais que o filme seja construído à base de fórmulas, cartilhas, convenções, clichês e arquétipos, uma boa execução sempre pode driblar e perfurar a casca que criamos por meio da experiência. É a magia do cinema, afinal? Para quem está disposto a comprar a ideia, sim.
