Desde o anúncio de Superman (2025), James Gunn deixou claro: a sua principal inspiração é All-Star Superman, a aclamada HQ escrita por Grant Morrison e ilustrada por Frank Quitely. Mas essa influência — salvo os robôs da Fortaleza da Solidão — não se trata de referências visuais ou cenas específicas: ela está no coração do projeto e no entendimento do diretor sobre o personagem.
Se Zack Snyder olhava para o Superman como um semideus trágico, dividido entre mundos, Gunn — assim como Morrison — vê o Superman como um símbolo de esperança plena, alguém que escolhe a bondade, não por obrigação, mas porque acredita nela. E isso muda tudo.
Morrison escreveu o seu Superman como um mito moderno, mas enraizado no que há de mais humano. Ele é sábio, gentil, sensível. Ele escuta. Ele cuida. Ele sorri. É uma figura quase solar, não porque ignora a dor, mas porque decide iluminá-la. Essa humanidade não apenas é sugerida, mas central do texto de Gunn.
O cineasta — e CEO do DC Studios — abraça esse mesmo espírito. O seu Superman não é definido por sua força, mas por sua empatia radical — comparada ao punk rock, inclusive. A ideia de um herói que, mesmo podendo esmagar um Kaiju, escolhe tentar salvá-lo e, ao mesmo tempo, resgatar uma criança inocente e quase imperceptível em sua pequenez (no sentido literal), define exatamente o tom que Gunn quer resgatar: não é sobre poder, é sobre presença.

Gunn acredita que os super-heróis podem e devem falar sobre o mundo real com ternura e profundidade. Que ainda há espaço para heróis que inspiram — e não apenas espelham nossos medos. Ao tomar All-Star Superman como base, James Gunn não está apenas adaptando uma história de sucesso. Está fazendo uma declaração de intenções, e dizendo que, num mundo saturado de ironia, brutalidade e desilusão, a bondade ainda importa. Que a esperança ainda é revolucionária. Uma passagem muito específica do material original ilustra sobre que se trata o Superman de James Gunn.
O Superman como presença, não como poder
“Você é muito mais forte do que pensa. Confie em mim.” — All-Star Superman #10, por Grant Morrison e Frank Quitely
Em uma das cenas mais emblemáticas dessa história em quadrinhos, Superman interrompe o suicídio de uma jovem chamada Regan, que estava prestes a se jogar do alto de um prédio. Ele não chega voando com estrondo, nem faz discursos heroicos. Ele simplesmente aparece do nada, com um abraço, e com as palavras exatas.
Essa frase — simples, suave, quase sussurrada — condensa tudo o que o Superman deveria ser. Não é uma questão de derrotar vilões, levantar planetas ou disparar raios dos olhos. É sobre olhar alguém nos olhos e dizer: “Eu vejo você. Eu acredito em você. E estou aqui.”.

Regan não precisava de um salvador no sentido épico. Precisava de alguém que acreditasse nela quando ela mesma não conseguia. E é isso que Morrison entende com clareza dolorosa: o maior poder do Superman não está em sua força, mas em sua capacidade de escutar, acolher, conectar.
Ele não diz “eu vou te salvar”. Diz: “Você consegue. E eu estou aqui com você.”. Há uma generosidade imensa nisso. Um tipo de heroísmo que não busca o mérito, mas o cuidado.
Numa era marcada pela ansiedade, pela solidão e pela sensação de que o mundo virou as costas para o sofrimento cotidiano, essa frase brilha como uma centelha. É o oposto da indiferença. É o Superman sendo, não um deus inatingível, mas um reflexo do melhor que a humanidade pode oferecer a si mesma.
Essa cena, breve e silenciosa, é muitas vezes mais poderosa do que qualquer batalha. Porque ela nos lembra de que, no fundo, todos precisamos ouvir isso às vezes: que somos mais fortes do que acreditamos. E que alguém — mesmo que só por um instante — confia em nós.
Estrelas e heróis: o DCU começa a ganhar rostos
O longa traz David Corenswet no papel de Clark Kent / Superman, apresentando uma versão jovem do herói (aos seus trinta anos de idade, havendo começado aos vinte e sete), que busca equilibrar a sua herança kryptoniana com a sua humanidade. Ao seu lado está Rachel Brosnahan como Lois Lane, a ousada repórter do Planeta Diário e interesse romântico de Clark e Superman (como foi o caso de Amy Adams com Henry Cavill). A equipe do jornal se completa com Skyler Gisondo como o entusiasmado fotógrafo chad, Jimmy Olsen; e Wendell Pierce como o rigoroso e carismático editor-chefe Perry White.

O universo do filme se expande com a introdução de diversos heróis do novo DCU. Isabela Merced (que sustentou boa parte da segunda temporada de The Last of Us) interpreta Kendra Saunders / Mulher-Gavião, reencarnação de Chay-Ara; Nathan Fillion dá vida ao irreverente Lanterna Guy Gardner; Edi Gathegi assume o papel de Michael Holt / Senhor Incrível (Mr. Terrific), um gênio estrategista; e Anthony Carrigan interpreta Rex Mason / Metamorpho, capaz de adaptar o corpo a diferentes substâncias.
No núcleo dos vilões, Nicholas Hoult assume o papel de Lex Luthor, CEO da LuthorCorp e arqui-inimigo do Superman. Ele acompanha de Sara Sampaio, a hilária influencer Eve Teschmacher, sua assistente; e María Gabriela de Faría encarna Angela Spica / The Engineer, uma cientista com tecnologia integrada ao corpo, vinda do grupo Authority; além do misterioso Ultraman.

Na parte mais íntima da vida de Clark, temos Pruitt Taylor Vince como Jonathan Kent e Neva Howell como Martha Kent, os pais adotivos que o criaram em Smallville. Já o universo militar e governamental é representado por Frank Grillo como o Coronel Rick Flag Sr., personagem que já vimos em uma versão animada (e grisalha) na série Creature Commandos.
Já Alan Tudyk (sim, o K2S0 de Rogue One e da segunda temporada de Andor) empresta a sua voz ao robô “4”, um autômato kryptoniano que exerceu importante papel na trama tecnológica do filme, envolvendo a Fortaleza da Solidão e um vislumbre (ainda que importantíssimo) de Jor-El (Bradley Cooper) e Lara Lor‑Van (Angela Sarafyan).
Fidelidade, nuance e presença: personagens de carne, osso e mitologia
Impressionantemente (e ao contrário da inevitável comparação com Jurassic World: Recomeço, por sua proximidade temporal), todo o elenco se sustenta muito bem; ainda que os destaques tenham ficado com quem interpreta os maiores personagens. David Corenswet encarna com maestria a visão de Gunn (e de décadas de histórias em quadrinhos) do Superman e de Clark Kent, ainda que este tenha menos tempo de tela do que em outros longas. Um roteiro bem executado, no entanto, só necessita de uma ou duas passagens para que se compreenda a personalidade de um personagem e o seu papel no contexto no qual está inserido.
A mesma maestria pode ser atribuída ao Lex Luthor de Nicholas Hoult. Por anos Michael Rosenbaum foi o Lex definitivo em live-action, e finalmente é possível, agora, haver algum debate a respeito. O intérprete do antagonista em Smallville (2001-2011) — que entrevistou Hoult alguns meses antes do longa, inclusive — certamente ficará orgulhoso do colega de profissão.

Assim como no caso do protagonista, aqui a interpretação alinha-se com um entendimento pleno do personagem por parte de Gunn, que assina roteiro e direção. Não se trata de especulação imobiliária ou uma mera caricatura, mas da vaidade e inveja; que andam de mãos dadas com a sede de poder. Assim como a humanidade do protagonista, isso está mais do que sugerido: é assumido no texto.
Isabela Merced assume um papel mais blasé na trama, mas carrega carisma o bastante para que a personagem não passe batida. Já Nathan Fillion sustenta um Guy Gardner digno desses anos de quadrinhos, e nos deixa ainda mais curiosos para o que virá na série Lanterns, da HBO. O Metamorpho de Anthony Carrigan, por sua vez, carrega o peso dramático do personagem, em seu tempo de tela disponível.

Já a Lois Lane de Rachel Brosnahan está no páreo com a de Amy Adams, mas com dois diferenciais: estar amparada por um roteiro que não insere a personagem como deus ex machina a todo momento; e, menos importante, por se assemelhar (em termos estéticos) absolutamente à personagem dos quadrinhos e animações que povoou o imaginário coletivo dos fãs e espectadores ao longo das últimas décadas.
O Jimmy Olsen de Skyler Gisondo, por sua vez, assim como os dos longas com Christopher Reeve e Brandon Routh (e até mesmo de séries como Smallville), encarna o arquétipo do personagem; ao contrário da versão agente secreto brevemente apresentada em Batman v Superman.
Alguém que desempenha na trama um papel maior do que os seus colegas da “Gangue da Justiça” é o Mr. Terrific (usemos o nome em inglês, para não confundirmos com o personagem de Os Incríveis) de Edi Gathegi, que entrega a postura de que o personagem necessita.

Por fim, quem rouba a cena em diversos momentos do longa é um personagem feito em computação gráfica. Krypto segue a escola criada pelo próprio James Gunn, com o seu Baby Groot; e aprimorada por Jon Favreau e Dave Filoni em The Mandalorian (2019-2023), com o Grogu, ou “Baby Yoda”. Um mascote nesses moldes, se bem utilizado na trama, nunca é um erro.
Quando o autor se curva ao mito
O carinho (e não é, de forma alguma, um exagero o uso deste adjetivo para o trabalho do diretor) de Gunn é perceptível desde os pequenos detalhes da mitologia do personagem — como o fato de os óculos de Kent servirem como uma espécie de hipnose, para que os outros percebam o seu rosto de maneira diferente; ou as inúmeras referências do uniforme, que passam pelo Reino do Amanhã, pelos Novos 52, pela Era de Ouro e, claro, pelo Superman clássico, como o conhecemos — até o esmero na execução do longa (mais redondo do que as Esferas T de Mr. Terrific ou do que a careca de Luthor).
É sabido, desde Guardiões da Galáxia (2014-2023) e reforçado pelo seu trabalho em O Esquadrão Suicida (2021), que o estilo de Gunn é mais ácido e irônico. O fato de permitir desconstruir-se e entregar o seu trabalho mais diferente, ao respeitar e reverenciar por completo o tom que o personagem pede; elucida tanto o amor quanto a competência e profissionalismo do cineasta. As únicas passagens que remetem a um “Gunn tradicional” são as da “Gangue da Justiça”, sobretudo por Guy Gardner; e de Teschmacher — e, ainda assim, de forma mais sutil do que em seus trabalhos pretéritos.

Para os haters de Internet e viúvos do Homem de Aço de Zack Snyder e Henry Cavill, que não pouparam esforços em criticar efeitos visuais inacabados de trailers e o figurino do herói em imagens com iluminações específicas; temos más notícias. Os efeitos visuais do longa são sublimes em qualidade gráfica e uso criativo; e o uniforme do kriptoniano se sustenta por todo o longa, além de traduzir em todos os aspectos o tom do filme e a alma do personagem.
O desencantamento do mundo
Max Weber, ao longo da conferência “A ciência como vocação” (Munique, 1917), posteriormente redigida e publicada pelo próprio Weber, trata do “desencantamento do mundo”. Este, a partir de então, passou a ser visto como um dos mais importantes aspectos da modernidade. Conforme dissecou Antônio Pierucci (“O Desencantamento do Mundo”, p. 7), a tradução estrita da expressão original em alemão (Entzauberung) seria “desmagificação”, e possuiria dois sentidos coexistentes ou alternados.
O primeiro significado seria o modelo de racionalismo da modernidade, e o segundo consistiria em um diagnóstico da época, pessimista, a perda de sentido. Em outras palavras, o primeiro significado seria uma conceituação estrita, um fato em si, sem juízo de valor, enquanto o segundo seria uma visão qualitativa que designa a perda de sentido (o primeiro seria um conceito produtivo e o segundo um conceito crítico).
Dado esse contexto, e fazendo a manutenção desse desencantamento para a atualidade; o cenário político atual, no Brasil e em boa parte do mundo, pode ser descrito como polarizado, instável e marcado por desconfiança. A democracia segue viva, mas está sob constante tensão — seja pela radicalização de discursos, pelo enfraquecimento das instituições, ou pela crescente sensação de que o debate público foi substituído por embates nas redes sociais. A complexidade dos problemas — sociais, econômicos, ambientais — exige diálogo e cooperação, mas o que muitas vezes vemos é conflito e paralisação.

Nesse contexto, precisamos de esperança não como fuga da realidade, mas como força motora. A esperança não nega os desafios; ela os encara com a crença de que é possível construir algo melhor. Precisamos de esperança para continuar participando, para acreditar que mudanças são possíveis, que o diálogo pode vencer o ódio, e que decisões políticas podem, sim, melhorar vidas. Em tempos de cinismo, a esperança é um ato de resistência — e também de responsabilidade.
A democracia cambaleia, não por falta de estrutura, mas por falta de escuta. Não precisamos de ilusões, mas de esperança. Sem esta, cede-se à indiferença. E a indiferença é a morte lenta da democracia.
Um Homem de Aço que paira acima de nós, mas nos reflete
Inegavelmente, o Superman de Zack Snyder é uma reflexão — não sobre o que ele é, mas sobre o que significa ser Superman em um mundo real, dividido e imperfeito. O Superman de Zack Snyder é uma figura solene, messiânica, quase incomunicável. Ele paira acima da humanidade — literalmente, em muitas cenas — mas raramente se mistura de verdade com ela. Seu olhar é distante, seu fardo é imenso, e seu heroísmo nasce mais do sacrifício do que da esperança. E é aí que mora a grande falha dessa visão.
Num cenário político global marcado por desconfiança, polarização e desesperança, o Superman não deveria ser apenas um reflexo de nossas angústias — mas uma contraposição a elas. E a polarização deste mundo é refletida na própria confusão que os idólatras do Superman de Snyder fazem, ao enxergar no ícone uma espécie de brucutu dos anos oitenta; o que nunca foi o caso.
Ele sempre foi, nos melhores momentos, um farol, não um espelho. Um lembrete do que podemos ser, não apenas do que somos. Snyder, ao mergulhar em sombras e dilemas quase niilistas, nos oferece um Superman que sofre mais do que inspira, que observa mais do que age com alegria, e que parece constantemente à beira do colapso.

Claro, há valor em explorar o peso de ser um símbolo num mundo imperfeito. Mas quando a única coisa que se vê é peso, algo se perde. Especialmente quando vivemos um tempo em que as pessoas precisam acreditar de novo em instituições, em empatia, em coletividade — e, acima de tudo, em possibilidades.
O Superman de Snyder é grandioso em sua dor, mas pequeno em sua esperança. E isso talvez diga mais sobre a nossa época do que gostaríamos de admitir. Mas também aponta para a urgência de resgatar uma visão menos crucificada e mais generosa do herói. Não um salvador, mas um companheiro. Não um mártir, mas um guia. Não um deus distante, mas um homem que escolhe ser bom — com um sorriso no rosto.
“Dizem que às vezes, quando você cai, você voa.” — All-Star Superman #6
O Superman de Gunn, assim como de Morrison, em All-Star, não está acima das dores ou limites. Ele sente, sofre, perde. Mas a diferença é que ele não permite que a queda o defina. Ele transforma a queda em impulso. Num mundo que muitas vezes nos empurra para baixo — com crises, medos, perdas, desilusões — essa frase funciona como um bálsamo. Ela sugere que as quedas são parte da trajetória, que o fundo do poço pode conter o trampolim, e que o voo, quando vem, é ainda mais significativo por ter partido da dor.
É um lembrete de que o ato de cair não é fracasso — é condição humana. E que o voo, quando acontece, não é milagre, é escolha. Escolha de continuar, de resistir, de tentar de novo. Morrison é conhecido por tratar super-heróis como mitos modernos. E essa frase ecoa como um ensinamento mitológico, algo que poderíamos ouvir de um sábio ou ler num templo antigo. Mas ele a coloca na boca de um cientista (Leo Quintum), o que nos lembra que fé e razão podem andar juntas, e que a esperança não precisa ser cega — ela pode ser construída.
Uma resposta à desesperança
É justamente por isso que o Superman de James Gunn surge com tamanha urgência. Dentro do seu dever de casa, o cineasta soube escolher o ponto de referência certo: o do mito moderno/contemporâneo. Gunn não nega a complexidade do mundo. Ele também entende que vivemos uma época de ansiedade, ironia, medo e fraturas sociais. Mas em vez de se dobrar a essa angústia, parece decidido a oferecer algo que anda em falta: um Superman que acredita — e que convida a acreditar junto.
Se o Homem de Aço de Snyder nos observa de cima, torturado pela dúvida, o Superman de Gunn promete caminhar entre nós. Com humanidade. Com senso de humor. Com leveza sem superficialidade. Gunn entende que o poder do Superman não está apenas na força, mas no modo como escolhe usá-la: com compaixão, gentileza e fé nas pessoas, mesmo quando elas falham. Especialmente quando falham.

Este Superman carrega o legado, mas olha para frente. Não é um símbolo quebrado tentando se recompor — é um símbolo em construção, feito de empatia, coragem e vulnerabilidade. Ele não quer ser adorado. Quer ser entendido.
Numa era em que o cinismo virou escudo e a esperança virou piada, Gunn propõe o resgate ao oposto, e sem vergonha disso. Como diria Magneto: “você já olhou para um tigre e pensou que deveria cobri-lo?”. Busca-se, aqui, a retomada de um herói que acredita que ainda vale a pena tentar. E que, ao fazer isso, lembra-nos de que nós também podemos — e devemos — tentar. Mesmo quando parece impossível. Sobretudo quando parece impossível.
Talvez seja esse o papel deste novo Superman: não salvar o mundo, mas nos inspirar a não desistir dele. Assim como no caso do Batman (1989) de Tim Burton e Michael Keaton, sempre haverá apego ao clássico ou original; mesmo com obras de arte subsequentes, como O Cavaleiro das Trevas (2008) e The Batman (2022); e aqui não será diferente. Sempre haverá apego ao Superman de 1978, mas a verdade é que este Superman de 2025 é o The Dark Knight (em termos de grandiosidade) e o The Batman (em termos de fidelidade ao espírito e personalidade do personagem) do Último Filho de Krypton.