The Last of Us Part II é um jogo que propõe uma reflexão sobre a natureza da violência, o ciclo da vingança e as consequências emocionais e morais de se viver em um mundo pós-apocalíptico. Ele é deliberadamente chocante e polarizador, e é exatamente aí que reside muito do seu poder narrativo.
A força motriz da trama é a vingança. A morte brutal de Joel no início do jogo, às mãos de Abby, estabelece imediatamente o motor narrativo para Ellie. O que se segue é uma jornada de Ellie obcecada em caçar Abby e seu grupo. A genialidade da narrativa, no entanto, é que ela força o jogador a vivenciar o outro lado da moeda. A história de Abby, apresentada de forma não linear e com uma mudança de perspectiva que inicialmente causa muita rejeição, revela que a vingança dela contra Joel também tinha suas raízes em uma perda traumática (a morte de seu pai por Joel no primeiro jogo).
A decisão de dedicar uma parte substancial do jogo à perspectiva de Abby é uma das mais ousadas e controversas. Inicialmente, o jogador é forçado a odiá-la. No entanto, ao jogar como ela, vivenciar seus traumas, as suas motivações, relacionamentos, e até mesmo as suas vulnerabilidades, o jogo tenta (e, para muitos, consegue) humanizá-la.

O Ciclo da Violência: Um Retrato do Jogo Original
A Naughty Dog não teve medo de desconstruir a imagem heroica de Joel, revelando as consequências das suas ações no primeiro jogo. Para muitos, a morte dele foi um choque e uma traição. No entanto, é fundamental para o propósito da história: mostrar que em um mundo como o de The Last of Us, não existem “heróis” absolutos ou “vilões” unidimensionais. As ações de Joel, por mais compreensíveis que fossem do ponto de vista de proteger Ellie, tiveram repercussões mortais para outros.
Ellie, por sua vez, passa de uma figura de esperança para alguém consumida pelo ódio. A sua jornada de vingança a transforma em uma pessoa irreconhecível, perdendo amigos, perdendo a sua vida em Jackson, e até mesmo a sua relação com Dina. O jogo explora o quão corrosiva a vingança pode ser, e como ela não traz a paz ou a satisfação esperadas.
A Vingança em Fragmentos: O Dilema da Adaptação
A partir daí já é possível delimitar as duas fraquezas centrais da segunda temporada de The Last of Us da HBO. A primeira é que optou-se por dividir a narrativa do segundo jogo em duas temporadas; e o recorte escolhido foi focar esta em Ellie e a vindoura terceira em Abby. Assim, a experiência completa do segundo jogo de fazer o jogador transitar em suas perspectivas entre Abby e Ellie perde-se. Há apenas um ou dois momentos onde podemos ter um vislumbre do lado de Abby; e um espectador que não teve a experiência de jogo pode apenas imaginar o restante.

A principal fraqueza – e que se complementa com a já mencionada -, no entanto, é apoiar uma temporada inteira na jornada de Ellie (agora principal protagonista) em uma jornada de ódio e vingança que nem o roteiro e nem Bella Ramsey conseguem sustentar. Desde os seus breves momentos em Game of Thrones até a primeira temporada de The Last of Us, a jovem atriz deixou escancarado o seu talento.
Na segunda temporada Ramsey, inclusive, entrega uma atuação impecável no terceiro episódio, quando é liberada do hospital e deixa, gradualmente, a sua máscara cair. Isso apenas torna mais confuso e difícil delimitar o que houve no restante do segundo ano da série. Faltou profundidade nas expressões e intensidade nas reações que fizessem o espectador sentir a corrosão da alma de uma personagem que já foi tão querida.
Há, portanto, uma retroalimentação entre um roteiro que não consegue trazer o desconforto do jogo que (fielmente) adapta, e que não impacta ao subverter expectativas (mesmo para quem não jogou e não teve acesso a spoilers); e a uma atuação que parece – não por incapacidade – não seguir um caminho que realmente pese no espectador a perda da inocência de uma jovem que já foi muito querida.
O efeito disso é uma Abby quem em nenhum momento desperta o ódio que deveria – e que, lá na frente, não passará pelo mesmo impacto almejado, de ser “humanizada” -, e uma Ellie que, em vez de soar como um Anakin Skywalker cedendo ao Lado Sombrio, parece apenas uma jovem extremamente mimada e imatura; estagnada em relação à primeira temporada. Por conseguinte, antes da vindoura humanização de Abby, ela já apresenta mais carisma do que a atual protagonista, graças ao trabalho e direcionamento de Kaitlyn Dever, mesmo com pouco tempo de tela.

Se eu tivesse uma segunda chance naquele momento, eu teria feito tudo de novo
Quem realmente rouba a cena, porém, são Pedro Pascal – até aí, nenhuma surpresa – e Isabela Merced; como Joel e Dina, respectivamente. O ponto alto da atuação de Pascal, e o coração da série como um todo, é a construção e desenvolvimento da relação pai-filha com Ellie. Joel é um personagem que não expressa abertamente as suas emoções mais profundas, mas Pascal consegue transmitir mundos com a sua atuação contida e poderosa. Mesmo com poucas falas, os seus olhos e as microexpressões faciais comunicam a dor, o arrependimento, o medo, a determinação e – na segunda temporada, mais do que nunca – o afeto. O público consegue “ler” o que Joel está sentindo sem que ele precise dizer uma palavra.
Na segunda temporada, a atuação de Pascal, mesmo que breve, é crucial para estabelecer o tom que permeia os novos episódios. A sua morte é retratada de forma chocante e brutal, e a maneira como reage (ou não reage) é impactante. Se o impacto do personagem deveria, conceitualmente, continuar a ressoar por toda a segunda temporada, servindo como o motor narrativo para a jornada de vingança de Ellie; isso se dá de forma completamente orgânica, quando o ator retorna – inteiramente em um flashback – no penúltimo episódio.

O sexto episódio entrega um dos momentos mais intimistas da série, dirigindo-se diretamente às raízes emocionais que sustentam a relação entre Joel e Ellie. O episódio articula um equilíbrio delicado entre flashbacks de esperança e os sombrios presságios de perda.
Os flashbacks, que percorrem aniversários de Ellie desde o retorno a Jackson, constroem um mosaico poderoso sobre como Joel tenta, e muitas vezes falha, em se reconectar com a paternidade após a perda de Sarah. Essa luta se reflete em uma cena inicial com o seu próprio pai, interpretado por Tony Dalton (e que, por vezes, atua como um espadachim), que adiciona camadas à história familiar de Joel.
O ponto alto do episódio é, sem dúvida, o último diálogo entre Joel e Ellie, recriado com fidelidade e emoção de tirar o fôlego. Na varanda, vemos a fragilidade de Joel exposta como nunca antes. Pascal oferece uma atuação sutil, mas avassaladora, transmitindo o medo paralisante de perder Ellie. A sua expressão é carregada de emoções reprimidas que falam mais alto do que qualquer palavra. A vulnerabilidade deste momento ecoa diretamente em Ellie, que tenta absorver a lição, mas também acaba carregando consigo o peso do ciclo de erros que Joel personifica.

No penúltimo capítulo Bella Ramsey ganha espaço para brilhar novamente, ao assumir uma versão mais jovem de Ellie com naturalidade, resgatando a energia e o otimismo que marcaram a personagem na primeira temporada. A visita ao museu – onde Ellie se perde em um sonho infantil, ao simular uma viagem espacial – é um raro momento de leveza, sustentado pela atriz. A alegria em seu rosto diante do velho módulo espacial é uma lembrança tocante do que significa ser humano, mesmo em um mundo devastado.
Um Porto Seguro: Resiliência, Sensibilidade e Força de Dina
Já a entrada de Merced como Dina na segunda temporada foi um dos maiores acertos da produção, pois a sua atuação não só conseguiu capturar a essência da personagem dos jogos, como melhorou e enriqueceu a personagem, ao imprimir a sua própria sensibilidade e carisma ao papel.
Desde as suas primeiras aparições, Merced estabelece Dina com uma presença calorosa e empática, um contraste bem-vindo não apenas à escuridão e à tensão que cercam Ellie após a morte de Joel; mas mesmo antes da tragédia, nos dois primeiros episódios. Ela transmite uma mistura de leveza e maturidade, o que a torna crível tanto em momentos de intimidade quanto em situações de perigo.

Um dos aspectos mais importantes da atuação de Merced é a forma como ela retrata a força e a resiliência de Dina. Embora não seja uma “guerreira” no mesmo nível de Ellie (o que é passado mais na teoria do que na prática), Dina demonstra uma coragem silenciosa e uma determinação notável. A sua gravidez adiciona uma camada de vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, de uma força protetora.
Merced consegue equilibrar essa vulnerabilidade com a capacidade de Dina de se defender e de lutar pelo que acredita, especialmente por Ellie e pelo futuro do filho. Ela se torna um porto seguro para a protagonista, um lembrete do que ainda resta de bom e da vida que poderia ser vivida longe da vingança – e isso é de fato sentido por meio de sua interpretação, saindo apenas do que diz o roteiro.
Vou te dar uma chance de dizer a verdade, Joel
Outro ponto fortíssimo da temporada foi o segundo episódio, que não apenas é um capítulo crucial na narrativa; mas o catalisador que impulsiona toda a trama que se segue. Desde o início, constrói-se uma atmosfera de falsa calma em Jackson. O episódio começa nos mostrando um pouco mais da vida na comunidade onde Joel e Ellie se estabeleceram. Essa representação da “normalidade” e da relativa segurança serve para aprofundar o contraste com a brutalidade que virá.
A invasão em Jackson eleva a tensão do episódio a um nível altíssimo. Ela serve como um prelúdio caótico para a tragédia que se segue. A sequência mostra a vulnerabilidade da comunidade, que até então parecia um porto seguro; e a brutalidade constante do mundo pós-apocalíptico. O nível de produção desse capítulo, em especial, equipara-se ao que se convencionou nos penúltimos episódios de cada temporada de Game of Thrones, também da HBO.

A execução da morte de Joel, por sua vez, é visceral. O som dos golpes do taco de golfe, a perspectiva de Ellie chegando e vendo a cena e o desespero de seus gritos são dolorosamente eficazes. Para quem jogou, foi uma recriação fiel e dolorosa. Para quem não o fez, foi um choque absoluto e uma subversão das expectativas de um protagonista supostamente intocável. Tudo isso foi sustentado por um elenco que entregou tudo, por meio de atuações que se mesclaram ao peso real da despedida do protagonista.
Um Ódio que não Convenceu
No entanto, esses personagens e as respectivas atuações por parte de seus intérpretes não sustentam o suficiente toda a problemática de uma temporada que tenta apoiar-se inteiramente na transição de uma adolescente esperançosa para alguém consumida pelo ódio. O efeito foi mais o de uma jovem que já tinha uma boa dose de sentimentos ruins dentro de si, e que passou por um gatilho que os aflorou – mas não de uma forma intensa ou chocante o bastante. Bella Ramsey e o roteiro a ela entregue não dão a sensação de que a vingança a está consumindo por completo: parece mais uma semana ruim.
O custo do desforço é abordado com sucesso em dois momentos-chave. O primeiro é o assassinato de Mel (Ariela Barer) e, por conseguinte, de seu bebê com Owen (Spencer Lord), ainda no ventre. O segundo é o assassinato de Jesse (Young Mazino) e o perigo iminente de que Tommy (Gabriel Luna) sofra as consequências de uma vingança que nem buscou. As outras tentativas, como o desabafo de Ellie com Dina sobre a violência contra Nora (Tati Gabrielle), mais uma vez são o roteiro tentando nos mostrar como a violência está corroendo a personagem; sem que isso seja, de forma alguma, sentido.
Coadjuvantes com Potencial e Tramas Subaproveitadas
Afora Kaitlyn Dever, há outros personagens interessantes com menor tempo de tela, que podem ou não ter mais destaque ou retornar na terceira temporada: Jeffrey Wright como o miliciano Isaac Dixon, Catherine O’Hara como a terapeuta Gail, Rutina Wesley como a líder Maria, Danny Ramirez como Manny; e Robert John Burke como o barista durão, Seth. Personagens que não devem retornar, mas que cumpriram bem os papéis para esta temporada, foram Jesse e Eugene (Joe Pantoliano, conhecido por trair Morpheus e a tripulação da Nabucodonosor).

O conflito entre os WLF e os Serafitas (Scars) também não convence o bastante. Não é suficientemente explorado para ganhar vida própria e se legitimar, e ao mesmo tempo não é uma nota de rodapé que se justifique apenas como curiosidade de lore e não tome tempo da trama principal.
A enfatização da brutalidade do mundo pós-apocalíptico e como a humanidade continua a se destruir, mesmo sem a ameaça principal dos infectados; são a mensagem central de The Last of Us enquanto obra. Porém, o conflito entre as facções deve enriquecer essa mensagem a fundo ou não desviar o foco do arco atual de Ellie, que carrega a mesma mensagem.
Aí talvez resida um dos – e aqui há de se defender que são poucos, em comparação com o longo e fracassado histórico das adaptações de jogos – problemas na transição de elementos vivenciados em primeira pessoa, no game; para aqueles observados em terceira pessoa, na série. A perda da interatividade afeta a experiência passiva de assistir à série. O jogo te faz sentir a vingança, vivenciar o perigo e explorar o ambiente. A série mostra.
Isso também se dá na primeira temporada, mas aqui é mais sentido, dado todo o contexto fornecido. O ambiente caótico da jornada de Ellie e Dina, forçando-as a enfrentar dilemas morais e a lidar com as ramificações de suas escolhas em um cenário de guerra civil, soa muito mais como um desvio narrativo na adaptação, do que como um espaço literal para alicerçar a trama.

Essência Preservada, Impacto Perdido
Há de se dizer, no entanto, que a qualidade da produção continua impecável, com a ambientação de Seattle como destaque. A trilha sonora de Gustavo Santaolalla, uma parte integral da identidade do jogo, também contribui para essa atmosfera – tal qual na primeira temporada. Os showrunners Craig Mazin e Neil Druckmann permanecem seguindo de perto a narrativa do jogo, incluindo os momentos-chave e a mesma intenção de tom. Infelizmente a essência da história e dos personagens, ainda que fielmente mantida, perde algo no caminho para a adaptação.
O jogo The Last of Us Part II é uma experiência catártica e muitas vezes desconfortável; e que tem a sua genialidade na coragem de subverter expectativas, de nos fazer questionar as nossas próprias noções de justiça e vingança, e de apresentar uma narrativa complexa que, embora dolorosa, é profundamente humana. Tudo isso é objetivamente mirado na adaptação para a segunda temporada da série; e, ainda assim, pouquíssimo alcançado.
Nota: 2.5/5