Quando Demolidor estreou na Netflix, em 2015, ela parecia diferente de tudo o que o universo Marvel já tinha oferecido até então. A série não vendia uniformes brilhantes ou frases de efeito: vendia silêncio, cicatrizes e peso. Matt Murdock (Charlie Cox) sangrava de verdade, e cada queda parecia ter consequências reais. O protagonista não era um herói reluzente, como Steve Rogers e Kal-El, mas um homem quebrado, tateando no escuro de sua fé, de sua cidade, de seus próprios limites.
A direção era segura, os diálogos respiravam, e o submundo de Hell’s Kitchen parecia pulsar, claustrofóbico e sujo, como um personagem à parte. E, em meio a tudo isso, emergia Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio), uma força da natureza contida em ternos muito bem cortados, cuja presença imensa ocupava mais espaço do que a própria tela. Do outro lado do ringue, o Rei do Crime surgia como um antagonista monumental; não um vilão genérico, mas uma figura trágica, quase shakespeariana, que amava – de Vanessa (Ayelet Zurer) e sua mãe (Phyllis Somerville) a Wesley (Toby Leonard Moore) – com a mesma intensidade com que destruía todo o resto.

O fim abrupto da série, em 2018, deixou um vazio que não foi preenchido por nenhum outro produto do MCU. O público sentiu falta do olhar atormentado de Matt, do coração moral de Karen Page (Deborah Ann Woll), e da lealdade insegura de Foggy Nelson (Elden Henson). Mais do que isso, sentiu falta de uma abordagem madura e corajosa, que dava tempo para os personagens respirarem, errarem, existirem. Por mais que o cancelamento tenha sido uma decisão estratégica, em função da criação da plataforma de streaming Disney+; para os fãs soou como uma traição – o fim de algo que ainda tinha muito a dizer.
Demolidor: Renascido chega, portanto, com o peso da promessa e da dívida. Não é uma sequência direta, nem uma reinvenção completa, mas um meio-termo paradoxal, e que tenta equilibrar a memória afetiva com as exigências do novo lar e da inserção mais intensa no MCU. O resultado, como veremos, é ambíguo: há momentos de brilho e coragem, mas também concessões óbvias, suavizações estéticas e uma urgência narrativa que dilui o impacto dramático. O reencontro com Matt e Fisk emociona, sem dúvida. Mas ao olhar nos olhos desse velho amigo renascido, é impossível não perguntar: o que ficou para trás no caminho até aqui? E, mais do que isso: há algum problema em deixar coisas para trás?
Ritmo e Narrativa: Tramas em Correria
A série original da Netflix (2015–2018) era marcada por uma cadência mais densa e introspectiva. Diálogos longos, cenas de construção psicológica e um tempo deliberado para desenvolver as motivações de heróis e vilões compunham o DNA da produção. A série da Netflix era deliberadamente lenta. Os seus episódios se desenrolavam como capítulos densos de um romance neo-noir, focando nas motivações internas dos personagens, nos dilemas morais e na tensão acumulada. Havia longos diálogos e pausas dramáticas que permitiam respirar o peso da narrativa.

Em contraste, Renascido adota um ritmo mais veloz, com cortes mais secos, menos contemplação e uma aposta em tramas paralelas desde o início. Isso aproxima a nova série do modelo mais tradicional da Marvel no Disney+, onde o tempo de tela precisa ser mais funcional – cada cena tem que “empurrar” a história pra frente com mais urgência. Em outras palavras, a Disney adota uma estrutura de série de ação com eventos mais condensados.
Cinematografia em Reconstrução: as Sombras se Dissipam e a Cidade Ganha Cor
A estética neo-noir, quase sufocante, da série da Netflix – com uso intenso de sombras, luzes quentes e enquadramentos claustrofóbicos – foi suavizada em Demolidor: Renascido. A Netflix entregava uma Nova York suja, claustrofóbica e eternamente mergulhada em sombras. O uso de iluminação monocromática (vermelho e amarelo, especialmente) era marcante, quase expressionista, com câmeras lentas e planos-sequência já clássicos.

Já em Renascido, a cidade ganha mais cor e mobilidade. As ruas estão mais vivas, há mais figurantes e um maior senso de “mundo externo”. A fotografia atual é mais limpa, iluminada, e busca retratar Nova York como um organismo vivo, com cenas externas em que a cidade participa da narrativa. A série utiliza reportagens de rua e cenas que acompanham pedestres, dando vida à cidade e contextualizando o impacto dos vigilantes mascarados na população.
Se antes o foco era o submundo – vielas, becos, corredores e tetos – agora temos ruas, avenidas e até a população civil reagindo aos acontecimentos políticos e super-humanos. O trabalho de câmera ainda é eficaz nas lutas, mas há uma suavização visual, possivelmente para alinhar ao padrão do MCU. A atmosfera perdeu um pouco do peso e da crueza.
Ecos de um Elenco que não Realmente Retornou: Nomes sem Rosto, Rostos sem Peso
Um dos pontos onde Renascido ainda patina em relação à série da Netflix é o desenvolvimento dos personagens secundários. Na série original, Foggy e Karen formavam o coração moral e emocional da história. Eles tinham arcos robustos, e eram parte ativa da narrativa, com conflitos próprios e desenvolvimento contínuo. Mesmo coadjuvantes como o Ben Urich ou a Claire Temple tinham presença significativa.

Agora, embora ambos reapareçam brevemente, as suas presenças são quase fantasmas: Karen se mudou de estado e Foggy aparentemente foi assassinado. O peso disso é sentido mais por Matt do que pelo espectador – o luto e a ausência são sugeridos, mas não plenamente explorados.
Quanto aos novos secundários: há uma tentativa de povoar o mundo de Matt (Charlie Cox) com figuras como Heather Glenn (Margarita Levieva), Sheila Rivera (Zabryna Guevara), Buck Cashman (Arty Froushan), Kirsten McDuffie (Nikki M. James), Cherry (Clark Johnson) e Daniel Blake (Michael Gandolfini). Contudo, o seu desenvolvimento é raso. Há uma tentativa de diversificar o círculo social de Matt, mas pouco tempo de tela é dedicado a aprofundá-los. A ausência do núcleo emocional formado por Foggy e Karen deixa um vácuo perceptível.
Os novos personagens cumprem funções narrativas importantes, mas ainda parecem orbitando à margem, com menos tempo de tela e desenvolvimento do que se esperaria: talvez pelo foco central estar dividido entre Matt e Wilson Fisk. É como se o novo Demolidor estivesse tentando andar sem a sustentação afetiva que o público aprendeu a amar. Isso cria uma narrativa mais solitária – talvez por escolha narrativa, talvez por falta de tempo e espaço em tela.
Foggy e Karen à parte – assim como Wilson Fisk, Vanessa Marianna e Frank Castle -, um personagem da série original que retorna é Benjamin Poindexter, o Mercenário (Wilson Bethel), para testar os limites físicos e mentais de Matt desde os primeiros minutos. A sua presença é um lembrete imediato da dor, do caos e da ameaça letal que ele representa – não apenas como um oponente habilidoso, mas como um espelho distorcido da própria identidade de Matt. A luta entre os dois, logo no primeiro episódio, é um reencontro carregado de uma história não resolvida, em que cada golpe parece exorcizar (ou reabrir) antigas feridas.
Entre a Crueza e o Computador: A Luta do Novo Demolidor
A ação continua sendo um dos trunfos da franquia. Na Netflix, tínhamos cenas de luta cruas, com peso e realismo (o famoso plano-sequência do corredor é quase um ícone). O Demolidor da locadora vermelha ficou famoso pelos seus planos-sequência e lutas realistas – sujas, longas, exaustivas.

Em Renascido, com mais orçamento, as lutas são mais acrobáticas e coreografadas, aproximando-se mais da estética dos quadrinhos. A troca de realismo por estilização pode desagradar alguns, mas agrada quem espera uma fidelidade maior ao Demolidor dos quadrinhos. As lutas impressionam – com destaque para a do primeiro episódio, entre Poindexter e Murdock -, mas em certos momentos o CGI causa um estranhamento maior do que gostar-se-ia de admitir, sobretudo pela falta de realidade nos movimentos.
Afinal, Murdock não é o Homem-Aranha; e os movimentos exagerados foram uma das principais críticas do longa de 2003, protagonizado por Ben Affleck. Aqui não chega a tanto, mas há um fundo de semelhança.
Tigre Branco, Justiça Cinza: O Caso Hector Ayala e a Distopia da Farda
É curioso notar que, apesar de ser uma série chamada Demolidor: Renascido, o próprio demora a dar as caras após o primeiro episódio. E tudo bem. Aqui, o que realmente importa não é a ação em si, mas o seu eco. A série entende que o verdadeiro impacto não está nos chutes e socos, mas nas escolhas que antecedem cada golpe. Murdock está mais vulnerável do que nunca, ainda em luto por Foggy, e decide fazer o que não fez em boa parte da série original: confiar no sistema. Apostar na lei. Deixar a máscara na gaveta, ao menos por um tempo. É nessa ausência que ele esboça reinventar-se.
O terceiro episódio de Demolidor: Renascido marca uma virada significativa na jornada de Matt Murdock: é a primeira vez em que ele escolhe deixar o vigilantismo completamente de lado para apostar, de maneira absoluta, na força da lei. E não por ingenuidade, mas por trauma. O luto pela morte de Foggy não apenas o abalou, mas o reorientou. Foggy sempre foi a bússola ética, a âncora legal, e a sua ausência não empurra Matt de volta à máscara: empurra-o para a toga.

Nesse contexto, o episódio traz Murdock defendendo Hector Ayala (Kamar de los Reyes), o Tigre Branco, acusado injustamente de agredir policiais durante uma abordagem já distorcida desde o início. O julgamento se desenrola como uma crítica à brutalidade policial e às falhas do sistema judiciário. A tensão do episódio vai além do embate jurídico: está nos olhares enviesados do júri, na postura arrogante da promotoria; e, principalmente, na carga simbólica que Ayala carrega por ser um herói latino em uma cidade à beira do autoritarismo.
Essa fratura se intensifica ainda mais com a revelação de que os policiais envolvidos na acusação contra Ayala pertencem a uma milícia informal que se apropriou do símbolo do Justiceiro. A caveira branca, antes uma marca de um justiceiro solitário, agora é usada por forças oficiais para justificar ações extrajudiciais, perseguições e assassinatos. A distorção é brutal: um símbolo de trauma e raiva individual convertido em bandeira fascista.
O texto da série é sutil, mas direto. Ao mostrar policiais com tatuagens e balas de caveira, e dispostos a eliminar testemunhas verdadeiras, a série lança um olhar ácido sobre o que acontece quando o sistema abraça a violência como método. Aqui, o subtexto se torna ainda mais forte quando evoca o Justiceiro de Jon Bernthal – cuja performance foi marcada pela fúria de um homem quebrado, em guerra consigo mesmo, não com o mundo em si.

O Justiceiro nunca foi um símbolo a ser seguido. Ele é uma ferida aberta, um grito contínuo de dor. Tanto a segunda temporada de Demolidor quanto a sua diluída série solo deixaram isso claro. Ver o seu ícone apropriado por autoridades como um brasão de heroísmo diz muito sobre como a dor individual pode ser cooptada, distorcida e usada como ferramenta de opressão. A caveira agora não representa justiça ou vingança, mas o controle pelo medo.
Ao final do episódio, o veredito do tribunal importa menos do que o estrondo silencioso da constatação de que o sistema está podre por dentro, e a lei – por mais que Murdock tente – não é mais suficiente para contê-lo. O velho dilema entre fé e violência retorna com força total. Agora, porém, Matt está mais sozinho do que nunca para enfrentá-lo; sem um Foggy para trazê-lo de volta.
Assinatura em Sangue
Nesse mosaico de dilemas morais e estruturas em ruínas, um nome surge com um peso estranho e difuso: Muse, vivido por Hunter Doohan. A sua introdução na série carrega uma aura de ameaça e mistério que remete, ainda que vagamente, ao tom perturbador que o personagem alcançou nos quadrinhos. Muse é um assassino com pretensões artísticas, um vilão que vê a morte como performance e que pinta com o sangue das vítimas. O seu modus operandi tem ecos de psicopatas clássicos da ficção, um híbrido de anarquia e estética que, à primeira vista, parecia capaz de instaurar um novo tipo de terror na vida de Murdock.

Essa promessa, infelizmente, não se cumpre por completo. Muse aparece menos do que o esperado, funcionando quase como um sussurro narrativo; uma presença sinistra que ronda os bastidores, mas raramente ocupa o centro da cena. A sua trajetória na temporada é mais simbólica do que concreta, e quando finalmente ganha tempo de tela, é rapidamente subordinado à escalada de Fisk com a sua força especial e ao drama de Matt com Heather. O arco do vilão não é um erro fatal; mas, sem dúvida, é uma oportunidade perdida.
Antes da despedida do personagem, porém, o episódio anterior trouxe uma cena intercalada entre os atos de violência de Muse e Demolidor, enquanto Fisk lida com Adam, o amante de Vanessa – em um dos momentos em que a direção arrisca algo mais ousado. A cena cria um paralelismo entre duas formas distintas de lidar com a violência. A cólera de Matt se mostra por urgência e desespero, em contraponto com a de Fisk por orgulho e vingança.

Mas, sob o verniz das justificativas, há algo em comum entre eles: ambos estão em ebulição, sedentos de uma catarse violenta. No fundo, pouco importa o motivo: o que os move é a necessidade bruta de extravasar a fúria que carregam e fazer o mundo sangrar um pouco da dor que eles próprios não conseguem mais conter.
Poder nas Urnas, Pavor nas Ruas: um Corno nada manso
Fisk, aqui, não é mais apenas um vilão, mas quase um co-protagonista. A sua ascensão à prefeitura de Nova York traz novas camadas, permitindo que ele opere tanto nos bastidores quanto no centro do palco. A série usa isso para explorar o embate ideológico entre ele e Matt Murdock com uma escala inédita, espelhando-o em termos de tendência à violência e brutalidade – mais do que na série original.
Na série da Netflix, Wilson era um vilão imenso, quase shakespeariano, mas presente de forma gradual. Em Renascido, Fisk retorna já como prefeito, numa posição de poder institucional. Ele vira um personagem central na política e no submundo, não só um antagonista físico. Isso dá um escopo maior à série, mas também exige mais equilíbrio de foco.

Foi ótima a sensação de tornarmos a ouvir dos lábios de Wilson a palavra “Vanessa”, mas o retorno da personagem trouxe um gosto amargo ao marido, ao cair em um dos pecados mais antigos da humanidade: o do par de chifres. No entanto, a dor de uns é o sucesso de outros, pois outro dilema enfrentado por Fisk é a perda de sua influência pretérita no submundo do crime – ainda que proposital, pelo fato de o personagem inicialmente buscar deixar o passado para trás e se afastar, para adquirir um poder institucionalizado.
Vanessa tornou-se uma espécie de “Rainha do Crime”, e provou obter muito mais sucesso no empreendimento do que o seu antecessor. O dilema de Fisk, na verdade, não é a perda do poder anterior em si, mas a falta de respeito com que é tratado a todo momento – inicialmente pelos outros chefes do crime, mas posteriormente pelas figuras envolvidas em seu cenário político. As pessoas mudam, isso é fato. No entanto, dentro de nós reside uma natureza muito mais inerente do que qualquer esforço que imputamos em nossa vida social. A de Fisk – ainda mais do que a de Murdock – é a da violência e do orgulho.
Essas faltas de respeito dispersas ao longo dos episódios não vêm sem consequências para o estado mental do novo prefeito, e a atuação de Vincent D’Onofrio transmite cada nuance de forma exemplar – desde os momentos de acúmulo de sensações e suas posteriores explosões, até o desconforto de ouvir o coro de crianças em uma apresentação escolar; em um dos momentos mais sutilmente cômicos da temporada.

É de se dizer que o roteiro da série deu mais oportunidade a D’Onofrio para entregar uma excelente performance do que a Charlie Cox. Isso porque Murdock se vê mais envolto no cotidiano das suas relações pessoais – mas narrativamente prejudicado pela já mencionada ausência de funções narrativas mais aprofundadas no círculo social de Matt – e do seu trabalho como advogado. Trata-se menos da questão de uma atuação contida (o que nunca é um problema), e mais da falta de uma base de apoio para tornar o personagem realmente mais interessante em seu arco atual.
No entanto, os personagens que trazem o melhor de Matt Murdock o fazem arrancando grandes explosões dramáticas de Cox: Poindexter, que arranca dele o melhor amigo; os policiais corruptos da futura Força-Tarefa, que o fazem sentir raiva de si mesmo por retomar a violência; e Frank Castle, na interação que melhor une diálogo e entrega de performance até então – ao lado do calmo café entre Wilson e Matt.
Coelho em uma Tempestade de Neve
Desde o julgamento de Ayala – ainda que tenha sido divertido o respiro do episódio do banco -, o arco de Murdock adquire melhores contornos notoriamente a partir do penúltimo capítulo, quando o senso de urgência literalmente bate à porta, na figura de Buck e de um convite a um Baile Preto e Branco. A partir de então, Matt entende que há pontos a se conectar, ainda que não saiba exatamente quais. A ansiedade sufocante que o permeia ao longo do episódio, paralelamente a um Fisk notadamente confiante e senhor de si mesmo novamente, finalmente dão ao espectador a sensação de recompensa (pay-off) da temporada.

Há de se dizer que, ainda que esse episódio conduza muito satisfatoriamente a trama ao seu desfecho, alguns detalhes poderiam fazer a diferença. Em uma escala categoricamente menor do que as outras séries da Marvel do Disney+, ainda há a sensação de que uma trama que caminhava a passos mais lentos adquiriu velocidade com brusquidão (a partir da tal cena em que Buck bate à porta de Murdock e desencadeia o restante).
Para sermos justos, a falha está no episódio anterior, que não soube conduzir tão bem a ponte para o ato final. Outro ponto – ainda que uma cena marcante – com potencial para mais foi o momento em que Poindexter utiliza o dente para assassinar guarda e doutor e escapar da prisão.
O primeiro episódio de Renascido quis honrar os planos-sequência da série original, mas era aqui que a homenagem realmente beneficiar-se-ia tanto do cenário – e, consequentemente, do número de figurantes – quanto do timing dramático e do personagem em questão. Afinal, além das cenas de corredor com o Demônio de Hell’s Kitchen, tivemos a cena da prisão com Frank Castle, na segunda temporada. A oportunidade de vivenciar um momento assim sob a ótica de alguém com ainda menos escrúpulos do que o Justiceiro não seria de se perder.

No entanto, duas oportunidades foram bem-aproveitadas. A segunda foi o reconhecimento, em um diálogo entre a sua sobrinha (BB Urich) e o Comissário Gallo, de Ben Urich, jornalista importantíssimo dos quadrinhos da Marvel por décadas; bem utilizado na primeira temporada, mas descartado para fins dramáticos precocemente.
Já a primeira foi o timing de enquadramento do sangue na pintura “Coelho em uma Tempestade de Neve” (“Rabbit in a Snowstorm”), após a decisão de Vanessa – personagem que, ao lado de seu marido, mais se beneficiou do espaço de anos entre uma produção e outra para mostrar crescimento (ainda que torto). Ela, portanto, mostrou ter ainda muito o que nos impressionar – e ao seu marido -, exatamente ao contrário da desinteressante Heather e da apagada Kirsten.
Rosto limpo, mãos sujas
O Wilson Fisk mais confiante que vai surgindo no oitavo episódio; no nono, chega ao seu ápice. Completamente solto e manipulador como sempre, a sensação que passa ao espectador é a de uma sinfonia que começa sutil e estranha – ainda que interessante – e vai aumentando de forma caótica, em uma cacofonia que ameaça estourar os nossos tímpanos. A verdade é que a principal diferença entre a jornada do personagem nesta série e nas temporadas da original é que aqui o espectador não teve acesso direto aos planos e intenções do Rei do Crime.

Na série da Netflix, tanto na primeira quanto na terceira temporadas, o público acompanhou de perto cada passo do personagem em suas manipulações rumo aos seus objetivos finais. Aqui, durante a jornada talvez tenha havido o sentimento de andar um pouco no escuro. A sensação de entrega não é mais ou menos satisfatória de uma maneira para outra: na primeira, é entregue de forma mais distribuída; enquanto na segunda a entrega se dá em hipérbole na season finale.
Uma coisa é certa: de todas as consequências de o “Universo da Netflix” ser integralmente assumido pelo Universo Cinematográfico Marvel, a mais relevante narrativamente é o espaço que o Rei do Crime ganhou para finalmente ser para o cenário urbano o que Thanos foi para o universo – ou Destino para o multiverso. O personagem não está completamente solto apenas no final da temporada em relação ao restante; está mais solto do que nunca. Agora as suas ações podem gerar consequências em maior escala e por maior período de tempo. Se antes a maior escala para a Marvel urbana da Netflix era o Tentáculo culminando nos Defensores, as ações de Fisk em Renascido podem afetar até o próximo longa do Cabeça de Teia.
Bem-Vindo de Volta, Frank
Quando sobe a maré, todos os barcos sobem. Graças a essa máxima, tivemos os melhores momentos de Frank Castle desde a sua primeira aparição na segunda temporada de Demolidor. Sem a vergonha que sua série solo apresentou – afinal, Hollywood parece não saber utilizar vilões ou similares como protagonistas -, o retorno ao posto de coadjuvante permitiu ao personagem se soltar nos mesmos moldes de Fisk; mas não o bastante para saciar a sede.

Mais uma vez, agora nas palavras do próprio Castle, somos lembrados de sua distorcida visão de mundo, e de como não devemos nos inspirar nesse personagem na vida real; assim como a Força-Tarefa na série. Frank possui uma visão dicotômica do mundo, com uma clara separação entre certo e errado, e vive em uma solidão autoimposta, com extrema dificuldade de formar vínculos emocionais. Ele sabe disso. Ver aqueles policiais carregando o seu símbolo é um desgosto, porque Frank sabe que não deveria ser motivo de orgulho para ninguém.
Analogamente, Matthew readquiriu os contornos pretéritos do seu personagem, e uma linha de diálogo com Karen faz parecer – como diria Heath Ledger – que “faz tudo parte do plano” narrativo. Apesar de não ser a intenção da produção apresentar subtramas ou coadjuvantes desinteressantes no miolo da temporada, isso poeticamente conversa com a jornada de Murdock, que parecia estar vivendo na inércia. O retorno de Karen, além das razões explícitas, traz uma série de pequenas recordações – “Abacates da Lei” – que exercem função na audiência e no protagonista em concomitância.
Além de Castle, outro Frank é bem-vindo de volta, ainda que não explicitamente. É sabido que Frank Miller é o responsável pelas melhores histórias do Demolidor. Sob sua pena, o personagem deixou de ser um herói marginalizado para se tornar um dos mais fascinantes da Marvel. Em O Homem Sem Medo e A Queda de Murdock, Miller aprofundou a dualidade de Matt, explorando a sua luta moral entre fé, justiça e vingança. Introduziu elementos noir, com uma ambientação sombria e realista que refletia a dureza de Hell’s Kitchen, enquanto figuras como a Elektra e o Rei do Crime foram complexificadas, ganhando motivações e dilemas profundos.

A série da Netflix adaptou, ainda que livremente, O Homem Sem Medo na primeira temporada e A Queda de Murdock na terceira. A influência de Miller é categórica. Apesar de Demolidor: Renascido adaptar fases mais recentes dos quadrinhos – sobretudo a do escritor Brian Michael Bendis, que aqui atua como consultor -, a série e, mais ainda, o último episódio, carrega uma forte influência de Miller em outro personagem… de outra companhia.
Frank Miller redefiniu o Batman de forma revolucionária com O Cavaleiro das Trevas, transformando o herói em um símbolo da luta contra o caos em uma sociedade distópica. Abordou temas políticos e sociais, como a corrupção institucional, o papel da mídia e a polarização da sociedade. Esses temas soam familiares aqui, não?
Ainda assim, o que mais marcadamente chama a atenção é a semelhança entre a Gotham e a Nova York colapsadas. No ápice de O Cavaleiro das Trevas, Gotham mergulha no caos absoluto quando a cidade perde completamente a sua energia elétrica. Sem luzes para iluminar as ruas e sem a força da ordem pública, o medo e a desordem dominam a população. Gangues e cidadãos desesperados se entregam ao vandalismo e à violência, transformando as avenidas em um cenário de destruição, com lojas saqueadas, carros em chamas e gritos ecoando na escuridão.

Apesar de o episódio ter apresentado bem esse cenário de ausência da ordem, havia espaço para inseri-lo mais em primeiro plano, tal qual na história do Homem-Morcego. Ainda assim, trouxe detalhes interessantes, como a velocidade com a qual conceitos podem ser distorcidos. A passagem na qual um policial mata um ladrão e, sob a reclamação do parceiro, veste o corpo com uma máscara para que seja tido como um vigilante; é mais marcante do que pode parecer em um primeiro momento.
Diferentemente do personagem da DC Comics – que no momento crítico ressurge como um símbolo de controle e resistência, usando a sua presença intimidadora para restabelecer a ordem em uma cidade à beira do colapso: “hoje, eu sou a lei” -, o protagonista da série segue o caminho das sombras, deixando as maiores ações para a próxima temporada. O que há em comum com o Batman de Frank Miller, porém, é que aqui o Homem Sem Medo também reafirma a sua posição como vigilante em resposta à situação de sua cidade. Talvez os Defensores possam ver a luz novamente, afinal.
Renascido, Não Repetido: a Alma Retorna em um Novo Corpo
Demolidor: Renascido é, de fato, um renascimento, mas não um substituto direto da série da Netflix. É como se fosse uma nova fase dos quadrinhos, com uma equipe criativa diferente – mesma alma, mas outra forma de contar.
Se a série original era um drama criminal com tintas existencialistas, a nova é um thriller político-super-heroico mais vibrante – e por que não dizer “pop”? Cada uma tem os seus méritos, e o julgamento final talvez dependa mais da sua sensibilidade como espectador: você prefere a luta interna de Matt ou a guerra externa contra o sistema?

A escolha pelas mudanças em consonância com as constâncias, opiniões à parte, parece um acerto, pois implica na aceitação do óbvio: a série da Netflix acabou, e fazem sete anos. E, tal qual Renascido, está disponível no catálogo do Disney+ para ser reassistida a qualquer momento. Como um novo produto – ou, se desejar ser mais sensível e menos capitalista; uma nova narrativa -, todas as mudanças de tom, ritmo e personagens se mostram escolhas inteligentes e até mesmo calculadas.
Ainda assim, Karen Page retornou para a season finale, com direito a revisitações nostálgicas de interações pretéritas. Isso significa que os coadjuvantes da série original podem ter sido tirados de nós bruscamente logo no início da temporada, como um band-aid, para que entendamos se tratar de algo novo. Com isso uma vez compreendido em sua totalidade, gradativamente reavemos elementos da série original; que, convergindo com o novo status quo, formam um belo amálgama e prometem muito mais.
Nota: 4/5