A Substância

A Substância | Crítica

Sumário

A inserção temporal que permeia a publicação deste texto não priva ninguém de mistérios quanto ao fenômeno cinematográfico de 2024 que foi A Substância, obra do subgênero body horror concebida, produzida, dirigida e roteirizada por Coralie Fargeat. Trata-se do seu segundo longa-metragem, após Revenge (2017). 

A trama se dá em torno de uma ex-atriz oscarizada e com nome na calçada da fama, Elisabeth Sparkle, agora apresentadora de um programa de TV de boa audiência. Não bastasse estar cada vez mais insatisfeita com a progressividade de sua idade, o rápido desgaste das mulheres no show business e a forma como são dispensadas quando chega o seu momento são o gatilho final de que Sparkle precisava para participar de um experimento científico que duplica o seu corpo. 

Nasce, então, um segundo corpo mais jovem, enquanto o original fica dormente, e vice-versa. É categoricamente estabelecido que “ambas” (somos o tempo todo lembrados de que são a mesma pessoa) não podem se alternar por mais de sete dias, ou haverá complicações severas.

A Substância tem como os seus três principais nomes do elenco os veteranos Demi Moore (Ghost – Do Outro Lado da Vida) e Dennis Quaid (O Dia Depois de Amanhã), além do nome em ascensão de Margaret Qualley (Era uma Vez em… Hollywood). A escolha pela veterana não se deu ao acaso, pois tanto o filme funciona como metáfora à carreira recente da atriz, nos moldes de Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância) (2014), como blinda a sua metalinguagem de uma crítica voraz que não dialogava com a de Michael Keaton: a diferença do envelhecimento feminino aos olhos do mundo; e, mais ainda, da indústria.

Se em certa medida fica difícil se convencer disso na figura de uma Demi Moore conservada como sempre, essa é precisamente uma das poucas sutilezas que funciona na mensagem que o filme almeja passar. A crise da meia idade não está na hipérbole de alguém que envelheceu de maneira A ou B, mas em um mínimo pé de galinha, uma leve flacidez em determinada parte do corpo, ou em alguns fios de cabelo branco. No fim, não importa, é mais sobre o que você está notando no espelho do que o que os outros pensam sobre você.

A Inesperada Virtude da Sutileza

O longa beneficiar-se-ia muito mais se houvesse optado por um desenvolvimento da problemática mais voltado a esse lado sutil da crise de meia idade, e progressivamente lidasse com os verdadeiros monstros por trás disso: a indústria da estética e o show business. 

Caso pesasse menos a mão em exageros, como o fato de a maior parte dos homens tratá-la muito mal ou não possuir qualquer interesse (em amplo sentido) na protagonista, o filme teria sabido construir uma sensação de progressão, empatia e senso de horror com muito, muito menos. Assim, ao trazer tudo para a hipérbole desde tão cedo, a escalonação só pode começar do alto, e o subgênero do terror corporal não é o melhor espaço para isso.

A Inesperada Virtude da Sutileza
Fonte/Reprodução: Mubi

A cineasta lista entre as suas grandes inspirações nomes como David Cronenberg, David Lynch, Paul Verhoeven e John Carpenter. Não há como não cogitar não pensar no primeiro deles, uma vez que A Substância parece ser a versão ao mesmo tempo tímida, ao mesmo tempo corajosa, e, portanto, completamente desencontrada, de A Mosca (1986).

Havia um espaço exorbitante para que o filme fosse mais sutil na forma de passar a sua mensagem; e o fato de não o ser, e estar sendo aclamado dessa forma, talvez seja sugestivo de uma audiência que não tem mais paciência ou interesse de consumir narrativas com maior grau de subjetividade ou sensibilidade.

É claro que a caricatura é uma forma válida de expressar uma ideia, mas é preciso saber como usar (ou, neste caso, dosar?) a sua linguagem estilística, para que não se perca na fetichização do ato de chocar. Quando se faz isso, periga-se transformar a arte em propaganda da qualidade mais vulgar. E saber como usar a linguagem, no caso, não é só uma questão de proporções, mas de como construir de forma intrincada a sua obra desde o início, para que haja unidade e até mesmo bom gosto.

O uso da nudez, por exemplo, jamais foi ou será um problema em qualquer forma de expressão artística, e um ótimo exemplo disso foi a descoberta por parte de Christopher Nolan desse recurso narrativo em Oppenheimer (2023). Aqui, assim como o grotesco gore, a nudez ultrapassa o seu uso narrativo e, mais uma vez, torna-se só uma fetichização – talvez feita exatamente para agradar o tipo de homem extremamente vulgar e caricato que o longa insiste em nos mostrar a todo momento.

Outro uso da vulgarização para forçar a sensação desesperada de choque por parte da audiência é a utilização grotesca de elementos viscerais em forma de alimentos. Para se ater a dois exemplos: Dennis Quaid destrinchando o seu camarão como uma aberração e Demi Moore completamente bruxa (não como em Wicked), arrancando com crueldade as entranhas de uma ave que cozinha enquanto assiste à si mesma na televisão. A audiência já havia compreendido que as duas estavam dissociando-se de forma perigosa, assim como havia entendido que o empresário é abusivo e desrespeitoso com mulheres.

A Inesperada Virtude da Sutileza2
Fonte/Reprodução: Mubi

A Substância é um filme que, diferentemente de obras como A Mosca, não busca no grotesco a sua linguagem direta e proporcionalmente construída e estilizada, pois ao mesmo tempo flerta o tempo todo com o sensual e com o glamour, numa espécie de combinação de mau gosto. Houvesse optado pela sutileza e nuances, e usasse o horror corporal dentro de uma linguagem mais autêntica; ou houvesse abraçado o gore trash de peito mais aberto, haveria maior lógica estética e narrativa para si.

O longa de Cronenberg, por exemplo, representa as mutações físicas de Jeff Goldblum de forma visceral e realista, que se tornam cada vez mais grotescos à medida que se aproxima de sua total transformação em uma criatura híbrida. Cronenberg se apropria de um ritmo gradual na construção do horror, permitindo que a transformação do protagonista seja dolorosamente lenta, mas progressivamente mais perturbadora. O filme é sobre como o conhecimento e a ambição científica, quando descontrolados, podem levar à perda da humanidade e ao horror. 

A forma como o cineasta constrói isso tanto serve a como o filme compreende a si mesmo, imageticamente e enquanto produto artístico, como expõe com mais subtextos o tema da fragilidade humana, do medo da perda de controle e da alienação. O estilo visual grotesco serve como uma amplificação simbólica da temática do sofrimento e da perda da identidade, de forma que só um dos dois elementos precisa ser mais realçado, para amparar o outro.

Caricato, vulgar e fetichista

Portanto, o fato de A Substância ser caricato, vulgar e fetichista em precisamente e categoricamente todas as suas dimensões, estética e narrativa, gore e sexual, e ser recebido de forma lustrosa como uma das grandes obras do ano, é o que realmente aterroriza.

Ironicamente, ao mesmo tempo em que A Substância expõe de forma birrenta a sua crítica à indústria da estética e da vaidade e do show business, ainda dominado por homens; ao menos elucida acidentalmente – e por isso funciona – de forma sintomática o desencantamento do mundo proposto em Weber na dimensão do público enquanto consumidor de estórias. Isso, sobretudo, nesta terceira década, com a geração The Boys. Afinal, se não consigo mais apreciar pequenas belezas e sentir signos impressos nas telas como antes, preciso ao menos sair chocado da experiência fílmica, para me sentir vivo. Há sempre uma droga mais pesada para quem deixou de ver graça nos outros baratos.

Muito mais antigo do que a geração The Boys, no entanto, é o preceito de que não existe má publicidade. Se o também pretensioso Birdman (ainda que de forma muito mais elegante) foi uma metalinguagem para a carreira de Michael Keaton, e responsável por trazê-lo de volta ao mercado; que este possa fazer o mesmo por Demi Moore, pois esta não poupa esforços e entrega mais uma ótima performance em sua trajetória.

Execuções à parte, até mesmo o segundo maior mérito do longa, que é a sua trama básica, perde-se no terceiro ato, em uma briga entre dois corpos separados de uma mesma pessoa que está em conflito consigo mesma, no melhor estilo Christopher Reeve em Superman III (1983), mas sem tanta elegância – exceto pelo fato de que Superman III não é um filme nada elegante.

O desfecho da trama banhado numa chuva de sangue ao som de blast beats é, provavelmente, o momento em que o longa mais abraça o que realmente é, para mal ou para bem. Ao menos, tal qual a mensagem principal da trama, é quando se dá a sua autoaceitação.

Ao fim, a experiência proporcionada por A Substância pode ser comparada ao ato de ver 2 Girls 1 Cup, caso neste as garotas criticassem a todo momento a indústria pornô enquanto praticam sexo e coprofagia.

E, se você achou o final deste texto apelativo, soberbo, e cheio de frases de efeito, talvez com a intenção de te incomodar com menos naturalidade do que deveria, é porque a crítica pode ser um jogo da imitação de sua respectiva obra, se o autor assim desejar. A diferença é que você não desperdiçou 140 minutos lendo isto.

Nota 2/5

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