O Corvo

Crítica: O Corvo (2024)

Sumário

Antes de enxergá-lo como um filme em si, O Corvo (2024) nos remete a algumas questões intrínsecas à raça humana. Primeiramente, faz parte do nosso instinto de sobrevivência – quando somado a valores como esperança e uma pitada de desespero – insistirmos em algo até que o próprio motivo de nossa luta se perca no tempo. 

Por vezes, tentamos até o fim para nos vermos falhando. Por outro lado, há feitos de sucesso, aqueles que inspiram tantos outros. Em outros casos, finalmente conseguimos, mas o êxito não é acompanhado da expectativa que tínhamos quando essa busca fazia sentido. A pessoa que queria aquilo tão veementemente não é mais a mesma que conseguiu.

Da vida para as telas e de volta outra vez

O Corvo (2024) consegue trazer essa reflexão fora das telas e em determinadas passagens do longa em si. A pessoa que está lutando agora tem os mesmos motivos que a de outrora? Essa é a história da própria produção do remake, cujas tentativas datam pelo menos de 2011. Diferentes diretores e atores estiveram à frente do projeto, mas tudo sempre parecia errado – desde limitações orçamentárias até diferenças criativas entre os envolvidos.

Da vida para as telas e de volta outra vez
Fonte/Reprodução: Revista Empire.

E, ainda assim, a insistência perseverou, até que O Corvo encontrou em um dos mais jovens da talentosíssima família Skarsgård o seu rosto, tendo Rupert Sanders (Ghost in the Shell) como diretor. Desde que os holofotes iluminaram Bill em It – A Coisa, o astro tem provado o seu valor, e reforçado que os papeis mais peculiares permanecem o seu ponto forte (o remake de Nosferatu, de Robert Eggers, é o seu próximo projeto a ser lançado).

A sina de Hollywood

Outra questão que o remake de O Corvo traz à tona é uma velha discussão cinematográfica sobre adaptações – sejam estas de outra mídia ou remakes de filmes mais antigos. Afinal, até que ponto um remake precisa se diferenciar do original para que se justifique? Os espectadores realmente almejam assistir a um filme que segue à risca outro de 30 anos atrás?

Assumindo que é necessário haver uma boa dose de originalidade em um remake ou adaptação, surge o terceiro ponto de discussão: como se diferenciar de algo que já está ótimo? Hollywood tem nos provado há anos que essa pergunta permanece no limbo. Ao menos, por culpa dos vícios da própria indústria.

Longas como o Batman de 1989 e O Espetacular Homem-Aranha (2012) repetem o mesmo erro: acreditar que o acaso (bom ou ruim) não deveria existir em suas narrativas. No primeiro caso, Bruce Wayne não poderia ter seus pais assassinados por um assaltante irrelevante. O assaltante teria que ser aquele que, anos mais tarde, tornar-se-ia o Coringa (Jack Nicholson). 

Peter Parker (Andrew Garfield), por outro lado, não poderia ter sofrido um acidente numa excursão escolar e adquirir poderes aracnídeos. Os seus pais, na realidade, tinham que ser os cientistas a desenvolver as aranhas modificadas, e feito com que apenas o sangue da família Parker pudesse ganhar poderes.

O próprio preceito do filme, de que o corvo traz de volta do mundo dos mortos quem não consegue descansar devido a algo terrível, é explicado ao espectador no longa de 1994 de forma muito mais natural, na introdução. A narração em off serve à narrativa e dá tom ao universo estabelecido. Na nova versão a explicação é deixada para o meio do filme, quando é preciso ser introduzido um novo personagem que explica o roteiro para o protagonista.

Inclusive, esse personagem introduzido para expor a trama também é responsável por dizer o que Eric precisa fazer. A dor do protagonista é real e já bastaria para mover a trama, mas é uma entidade que diz o que deve ser feito.

Dessa forma, O Corvo acerta ao escolher trazer elementos novos à trama que já existia em formato de graphic novel e num longa de três décadas. Erra ao focar a sua diferenciação em clichês de amarração de pontas que não estavam soltas.

Original vs. Remake

O roteiro do remake vai por um caminho que visa reforçar a personagem de Shelly (FKA twigs) e, consequentemente, demorar-se mais tempo em sua relação com Eric antes do trágico assassinato do casal. Essa escolha é acertada ao explorar mais os personagens antes da partida de Shelly e da fúria de Eric. No entanto, explorar mais esse lado envolve fazer a escolha de abdicar de outros.

Como consequência, o longa deixa de lado todo o grupo de antagonistas, desde o grande inimigo até os capangas, que, no original, desempenharam papel central na trama e tiveram suas personalidades muito bem delineadas (como nos quadrinhos originais). O maior inimigo, por sua vez, é um personagem inédito, Vincent Roeg (Danny Huston).

Original vs. Remake
Fonte/Reprodução: Lionsgate Films.

Para amarrar a trama e anular a aleatoriedade das vicissitudes, no remake Shelly tem um passado com o antagonista, o que leva à tragédia envolvendo o casal protagonista. Não há acidente de carro ou atos de vandalismo em uma cidade marcada pela violência. Não, aqui está tudo conectado.

O problema é que o fio condutor da narrativa original se baseia em uma fatalidade na vida do autor: a morte de sua mulher em um acidente de carro, devido a um motorista bêbado. O drama central, portanto, é a aleatoriedade com que perdemos alguém que amados, arrancadas não só da vida, mas de nosso peito. Isso se perde quando o amor da sua vida morre por ter se envolvido profissionalmente com alguém que fez um pacto com o diabo (isso mesmo). Até onde é possível alterar uma trama sem corromper o seu cerne?

Outra escolha de roteiro foi trazer mais fragilidade ao protagonista. Aqui, Eric é um personagem completamente quebrado antes de conhecer o amor de sua vida. O mesmo pode ser dito de sua parceira. Até então paciente em uma clínica psiquiátrica, Eric decide viver com Shelly livremente, no melhor estilo Benjamin Button e Daisy, se o personagem de Brad Pitt abusasse de psicotrópicos.

Essa versão de Eric não é só interessante, como muito competentemente interpretada por Bill Skarsgård. O acerto, no entanto, não deve escapar do descontentamento dos fãs de Brandon Lee e dos quadrinhos de James O’Barr. A diferença é tão notória que se explicita em uma passagem do filme original, quando Eric Draven impede o policial Albrecht de fumar, pois faz mal à saúde. A nova versão abraça o uso de substâncias.

Não pode chover o tempo todo

Todo esse cenário leva a um pensamento inevitável: O Corvo deveria ser uma continuação mascarada de remake, com outros personagens e outros nomes. O Eric de Skarsgård apenas tem em comum com o de Brandon Lee o seu talento musical, o amor por sua mulher e o sentimento de vingança. O vilão Top Dollar deu lugar a Vincent Roeg, e a nova versão de Shelly ganhou pecados difíceis de serem perdoados (num primeiro momento).

Se o remake optasse por se passar no mesmo universo (como os próprios quadrinhos e filmes menos conhecidos da franquia), mas com outro personagem retornando dos mortos, talvez conseguisse se desvencilhar do apego e nostalgia dos mais fervorosos (que incluem o diretor do original, Alex Proyas, crítico ferrenho do remake).

Quanto ao antagonista, a escolha tomada molda o restante do longa, pois Vincent fez, no estilo Fausto, de Goethe, um pacto com o diabo. Em contraponto, a graphic novel e o filme de 1994 tinham no sobrenatural apenas o preceito básico:

“No passado, as pessoas acreditavam que, quando alguém morria, um corvo carregava sua alma para a terra dos mortos. Mas às vezes, acontece algo tão ruim que uma tristeza terrível é levada junto com a alma, e a alma não consegue descansar.”.

O remake, porém, traz o elemento sobrenatural para toda a trama, envolvendo todos os personagens. Esse caminho tem o seu valor, mas retira do novo antagonista o principal valor do original: a responsabilidade humana pelo mal cometido. Não há diabos sussurrando em nossos ouvidos, apenas nós e nossas vaidades, fugas e cóleras.

Poesia selvagem

Quanto às mensagens, outro contraponto se mostra fundamental entre os dois longas. No de 1994 a mensagem passada era que “Não pode chover o tempo todo. O Céu não pode cair para sempre”. No novo, uma das mensagens que mais se repete é “chore agora, chore depois”. O mesmo pessimismo permeia outros aspectos do longa.

Em termos estéticos o remake faz mais jus à estética original do que deu a entender no material de divulgação. Ainda assim, não se compromete em abraçar uma estética realmente gótica. A cidade é soturna, mas não soa como a cidade de céu avermelhado cujos habitantes pareciam saídos diretamente de um show gótico ou de metal.

Poesia selvagem
Fonte/Reprodução: Gallery 13; reedição (10 outubro 2017)

O filme flerta com a poesia e, por vezes, é bem-sucedido nesse aspecto. O problema é que quem flerta quase sempre busca algo mais. Existe um álbum de uma banda alemã, Edguy, intitulado Savage Poetry (1995). Poesia selvagem talvez seja o termo que melhor define O Corvo enquanto obra e como mensagem.

Nas versões pretéritas, James O’Barr e Alex Proyas uniram poesia e violência, como sangue escorrendo pelos dedos, quase em forma de um abraço. Um apoiado pelos traços fortes nas páginas; outro, por alguém que teria de tudo para ser um astro de Hollywood, não fosse por uma tragédia. 

O longa de 2024 tem o apoio de um novo astro e sua dose de acertos, mas a poesia parece tímida, e o nicho urbano gótico não toma a forma de uma Detroit fictícia inteira. A nova obra certamente impressionará espectadores mais desapegados ou de primeira viagem, mas perde o charme quando posta lado a lado com o clássico. Se a perdurável insistência valeu a pena, só o tempo dirá.

Nota: 3/5

Posts Relacionados