Os Anéis de Poder é um material que esbarra em um paradoxo nada interessante. Ao mesmo tempo em que se mostra uma obra inconstante em termos de acertos, há um elemento imutável que perpassa as duas temporadas: a sua cafonice. O lado bom disso é que, pelo menos nesse âmbito, a série sempre foi muito honesta quanto às suas intenções e à forma de apresentar a Segunda Era do universo de J. R. R. Tolkien.
Em alguns momentos a cafonice se mistura melhor, mascarando-se no contexto, tal qual Halbrand em Númenor. O início da primeira temporada é um exemplo elucidativo, desde a introdução em Valinor – com o discurso de Finrod Felagund sobre o barco – até a apresentação dos elfos em Lindon e da inocência dos pés-peludos. O excesso de nobreza, típico de seres como elfos e anjos, é intrinsecamente brega.
Ninguém se importa com os humanos
Não se deve confundir, no entanto, a boa combinação da escrita cafona com esses arcos e personagens como sendo uma escolha proposital; pois nos instantes seguintes qualquer dúvida é sanada, ao sermos apresentados aos arcos de Númenor e dos humanos das Terras do Sul (que a série, muito didaticamente, fez questão de pegar em nossas mãos ao revelar se tratar de Mordor).
A breguice de Os Anéis de Poder, em outras palavras, mostrou-se mais desnuda nos núcleos de personagens mundanos. Essa constatação não se encerra aí, pois revela dois problemas: a incapacidade de tornar os sulistas personagens com os quais o público pudesse se relacionar e até mesmo levar a sério; e a incapacidade de mesclar o tom mundano dos humanos com a nobreza, no caso dos númeroneanos.
Segredos conhecidos por todos
O problema com os humanos de Númenor é, talvez, o calcanhar de Aquiles da série, dada a importância desse núcleo, tanto na própria história em questão quanto em O Senhor dos Anéis, com a linhagem de Aragorn: os Dúnedain. Os númenoreanos precisam, sim, apresentar diversas características falhas e corruptíveis, mas isso precisa contrastar com a sua superioridade, que em nenhum momento se mostra crível.
Outro grande erro de Os Anéis de Poder foi a importância dada à criação de mistérios desimportantes, uma vez que todas as respostas estão nos filmes e livros. Em obras como essa a jornada importa mais do que nunca. Não precisaríamos de mistérios sobre quem é o estranho (Daniel Weyman) e Halbrand, ou se Isildur sobreviveu ao fim da primeira temporada. Ora, o personagem está literalmente na introdução de A Sociedade do Anel.
Redefinindo prioridades
Em contrapartida, os anãos foram, e continuam sendo, o hours concours da obra, impecavelmente caracterizados. São indiscutíveis a maquiagem, o figurino, a trilha sonora, os sotaques, cenários e, de modo geral, o tom utilizado para os anãos e Khazad-dûm. Isso não se sustentaria, claro, sem as interpretações de Owain Arthur, Sophia Nomvete e Peter Mullan como Durin IV, Disa e Durin III, respectivamente. Logo atrás ficam os pés-peludos, sobretudo pelo carisma de Nori (Markella Kavenagh) e Papoula (Megan Richards).
Dado esse contexto, a segunda temporada de Os Anéis de Poder trouxe um novo paradoxo, muito mais oportuno do que o primeiro: ao mesmo tempo em que não alterou sob nenhum aspecto o tipo de escrita, direção e, consequentemente, a cafonice; conseguiu entregar um produto final muito mais satisfatório em relação à sua predecessora. O mais interessante é que, em teoria, isso não deveria funcionar, mas não foi o caso.
O sucesso da nova temporada se deu mais por uma questão de cortar as partes podres do que por uma reestruturação propriamente dita. O arco dos humanos do sul, a grande tragédia da primeira temporada, já iniciou de forma tímida na segunda, e foi gradativamente reduzida em seu decorrer. Os númenoreanos também tiveram o seu papel reduzido a mostrar a ascensão de Ar-Pharazôn, apenas.
Annatar
Até mesmo a versão durona de Galadriel (Morfydd Clark) teve a sua importância reduzida, ainda que de forma mascarada. Elfos e anãos, ainda que estes sejam o núcleo de maior acerto, foram direcionados como apoio para contar a história que realmente importou nesta temporada: Annatar e a forja dos anéis em Eregion. Se houve esforços de reestruturação por parte dos realizadores, suas forças voltaram-se a esse núcleo.
O texto ainda revela seus pontos fracos quando Annatar precisa realmente ser o mestre da manipulação, mas acerta em não cair na mesma cafonice pretérita, principalmente pela dedicação de Charlie Vickers em se desvincular de qualquer crítica a seu papel como Halbrand. Charles Edwards pareceu fazer o mesmo, entregando uma profundidade a Celebrimbor que não vimos antes, e que só seria possível no momento atual da narrativa.
A dinâmica de Vickers e Edwards é, sem dúvidas, o coração da temporada; o que pode deixar a audiência apreensiva por sua ausência na terceira. O segundo trunfo, assim como na anterior, foi Adar – mesmo com a substituição de Joseph Mawle por Sam Hazeldine. O personagem possui o visual, a postura e as belíssimas nuances de caráter que se espera de todo bom antagonista, e o esforço na escolha dos dois atores denota a importância do personagem para a narrativa estabelecida.
Se Annatar e Celebrimbor estão configurados em uma dinâmica explícita, a relação de Adar e Annatar é mais simbólica. O pai dos orques assume um antagonismo ativo e uma ameaça física, como líder zeloso de um povo e general de um exército poderoso. Em contraponto, o Senhor das Dádivas é a força manipuladora que conduz a trama, pois a verdadeira vilania não possui ethos, e a maldade autêntica é muito mais sutil do que a força física.
Alterações no cânone
Para o regozijo de alguns fãs e o lamento de outros, personagens conhecidos deram as caras pela primeira vez em si – no caso de Tom Bombadil (Rory Kinnear) – ou em primeiro plano – pois Círdan (Ben Daniels) aparece ao fundo no final de O Retorno do Rei, nos Portos Cinzentos. Já Elrond (Robert Aramayo) e Gil-Galad (Benjamin Walker) ganham mais destaque na temporada, em uma trama de desavenças sobre o uso dos três anéis élficos.
Ainda sobre os fãs, além das críticas gerais em relação ao tom da série, estes ainda tendem a sofrer com alterações em relação ao que foi estabelecido por Tolkien em O Silmarillion e nos apêndices (legalmente a Amazon apenas pode usar o segundo). Talvez as que mais possam incomodar são a diferença do contexto do cerco a Eregion e a ordem da forja dos anéis – que altera severamente o arco de Celebrimbor.
Nos livros, os três anéis élficos foram forjados após a descoberta de quem é Annatar e o seu objetivo com os sete anéis dos anãos e os nove dos humanos. Dessa forma, os três anéis élficos foram criados como uma resposta aos outros, e uma forma de redenção por parte de Celebrimbor. Na série, a sua redenção torna-se muito mais diluída, pela criação dos três na temporada anterior, sem muito contexto.
O saldo final para a segunda temporada de Os Anéis de Poder é, no entanto, majoritariamente positivo. Porém, é preciso ter consciência de que, estruturalmente, nada foi melhorado em relação à primeira; mas outros caminhos foram encontrados. Se a série não amadureceu a forma de contar a história, ao menos compreendeu o que realmente deve ser contado, e em qual personagem a narrativa se baseia.
Nota: 4/5