Antes de abordar Coringa (2019), voltemos alguns passos. Desde que os filmes de super-heróis deixaram de se configurar como um estilo e tiveram o seu status quo alçado à condição de gênero cinematográfico propriamente dito, algumas de suas idiossincrasias consolidaram-se. A principal característica do gênero, e que desafia um postulado cinematográfico básico, é desconsiderar o princípio da Arma de Tchékhov.
Esse conceito, cunhado por Anton Tchékhov, estabeleceu que todos os elementos presentes em uma história devem favorecer a narrativa; ou seja, não se deve inserir elementos em vão. O nome refere-se a uma carta de Tchékhov ao seu irmão, em que afirma que uma arma mencionada no primeiro ato deve, obrigatoriamente, ser disparada no último ato.
A hegemonia dos heróis
A quebra desse princípio se dá pelos easter-eggs, uma brincadeira para encontrar os elementos no espaço (tela). Não têm função narrativa, dado que qualquer elemento disposto na tela que desempenhe papel na história, deixa de ser um easter-egg. Não são uma criação dos super-heróis em particular, mas foi por meio dele que atingiram um protagonismo na sétima arte, dado o aspecto da retroalimentação típica do gênero.
Menos sutis do que essa importante mudança na linguagem cinematográfica foram os números de bilheteria e de salas de cinema ocupadas por esses blockbusters. Longas de cunho autoral – ou mesmo filmes despretensiosos, no melhor estilo Sessão da Tarde – foram alçados aos catálogos dos streamings. Cineastas como David Fincher, Alfonso Cuarón e Martin Scorcese são exemplos dos que lançaram obras direto para a Netflix.
Este último é o que mais conversa com o Coringa de Todd Philips. Além de haver se destacado como o maior crítico do cinema de super-heróis, afirmando que não são cinema, tem uma assinatura tão marcante, que inspirou diretamente Philips em suas aspirações profissionais.
Cavalo de Tróia
Coringa (2019), portanto, nada mais foi do que o jeito que um cineasta encontrou de fazer o seu cinema com o mesmo barulho que os autores consagrados fizeram nas décadas passadas; e que apenas Tarantino, Christopher Nolan e outros poucos ainda conseguem. E a indústria cinematográfica viu nisso uma oportunidade de tirar a sua fatia, dá-la ao cineasta, e ficar com o resto do bolo.
Em outras palavras, Joaquin Phoenix e Todd Philips usaram o gênero dos super-heróis para lutar contra a hegemonia do próprio, como um Cavalo de Tróia. Apesar de Logan (2017) ter feito isso antes, Coringa fez melhor. Se o primeiro usou o gênero para fazer o seu western, o segundo se inspirou em clássicos que conversam mais com a audiência, que não tem paciência para rever filmes antigos, como Taxi Driver (1976) e O Rei da Comédia (1982).
Não basta, no entanto, um pássaro mastigar o alimento para dar aos filhotes: é preciso que seja um bom alimento. Aí está o mérito final da obra, sustentáculo dos anteriores: o talento dos envolvidos. Se Todd Philips amadureceu como cineasta após a trilogia Se Beber, Não Case!, tendo em Cães de Guerra (2016) a sua prova final; Joaquin Phoenix se mostrou mais uma vez um dos maiores nomes da atuação de seu tempo.
Legado
Quando se deixa para trás tudo o que circunda a existência do longa – cuja discussão sobre ser um mérito ou demérito mostrar-se-á infrutífera -, o que resta é um riquíssimo e puro estudo de personagem, em sua essência. Em relação ao pós-filme, este já não pertence mais aos envolvidos. A apropriação e/ou ressignificação das mensagens dispostas na tela ganham vida própria.
Por fim, o movimento iniciado com o mutante carcaju e o Coringa parece ter uma longevidade pela frente – inclusive na figura de mais um vilão do Batman, com a minissérie do Pinguim, uma série clássica de máfia disfarçada de um derivado do Homem-Morcego. A arte dá um jeito de fugir da indústria, que sempre consegue vencer com uma continuação. Mas sem continuações, talvez este texto nem existisse.